Valfrido está sentado num pufe à boca de cena em seu escritório de empresário com um telefone móvel no ouvido, mais ouvindo que falando. Às vezes faz intervenções de quem acompanha a exposição do outro, “sim, sim”, “é mesmo?”, “jura?”. Está inquieto, mas esforça-se por disfarçar isso. O escritório, num arranjo que lembra assessoria de estilista modificada pelo dono, com estante, troféus e quadro de fotos (uma de lutador), tem uma ampla janela de vidro fixo que exibe o cenário futurístico de São Paulo, o rio Pinheiros, edifícios empresariais, a ponte.
Valfrido
E Cleo? (Ouve.) E Júlio? (Ouve.) É impressionante. De onde você tira tudo isso, Sófia? Será paranormalidade junto com sua imaginação poderosa? Estou pasmo. Esses grandes voos da fantasia, Sófia, são impossíveis para mim. Sou pé no chão, mal consigo acompanhar! E Marco? (Ouve.) Sófia, você é uma bruxa! Marco, grande, forte e delicado. (Ouve, mas pisca uma luz no interfone e soa uma voz baixa que o chama:“seu Val?”.) Sófia, a secretária quer me falar, aguarde um momentinho, pode ser Bob. (Aciona o interfone.)
Voz da secretária, num sussurro
Seu Val, dona Numa aqui.
Valfrido
Aqui?! Numa?! Ela não vinha à tarde?
Voz
Está aqui, seu Val. Entrou no banheiro.
Valfrido
(Nota que o telefone está ligado e deixa vazar sua voz e a voz do interfone, quer desligar em pausa o telefone mas não sabe que botão apertar; afinal, abre uma gaveta da escrivaninha, joga nela o telefone e a fecha. Aciona o interfone e fala nele com o cuidado dispensável de um quase sussurro.)
Ana Lúcia?
Voz
Sim, seu Val.
Valfrido
Estou mudo aí?
Voz
Sim, seu Val. Numa no banheiro.
Valfrido
Ouça apenas.
Voz
Sim, seu Val.
Valfrido
Não diga “sim seu Val”, ouça apenas. Numa não pode entrar agora, estou falando com Sófia, não posso desligar na cara dela. Diga pra Numa que falo com Bob, do Chelsea. Explique quem é Bob e o que é Chelsea, valorize isso. Não mencione Sófia, pelo amor de Deus. Segure Numa aí, só um pouco, não deixe entrar. Entendeu?
Voz
Sim, seu… Oh, perdão, não, seu…
(Ele tira o dedo do interfone e faz menção de pegar o telefone móvel, mas não o acha, procura no chão e lembra-se de que o guardou na gaveta. Pega-o e fala nele.)
Valfrido
Sófia, é tu? Desculpe, um assunto urgente. E Marco Antônio, como ficou nisso? (Ouve.) Acho fascinante, admiro sua imaginação, seu dom mediúnico. Cleo é uma personagem magnífica, fico feliz que você seja ela agora. Ela é sensual, intrigante, poderosa, tudo o que uma mulher de grande personalidade, você, tem o direito de ser. Já nem sei se chamo você de Sófia ou de Cleo. Cleo, rainha do Nilo, ou Sófia, a feiticeira das biografias empolgantes? Sófia ou Cleo? (Ouve, mas é interrompido por um sinal de luz piscante que precede a voz de Ana Lúcia no interfone. Diz um rápido “um momentinho”, põe de novo o telefone móvel na gaveta que ficou aberta e a fecha.)
Voz (em quase sussurro)
Seu Val, dona Numa no banheiro. Mas pôs a cabeça fora e perguntou do senhor.
Valfrido
Vou olhar. (Ágil, vai da poltrona à porta, abre-a, olha, faz um sinal e volta à poltrona.) Distraia Numa mais um pouco, vou abreviar aqui. (Desliga o interfone e pega o telefone móvel na gaveta.) E a cobra? Teve uma cobra que picou Cleo na mama ou na mão, pois não? (Ouve.) Fascinante, Sófia, ouça. Bob, do Chelsea, o homem do futebol, chegou aqui, preciso atender. Que tal jantarmos na terça e você me conta tudo? Terça, combinados, mas confirmamos antes. Comece já a esboçar a aventura de Júlio e Cleo, do jeito que você sabe, vamos falar disso. Sim, ligue ou te ligo terça de manhã. Até lá, Sófia, perdão, Cleo, parabéns pela revelação incrível, vai dar um livro incrível. Beijo, Sófia, Cleo meu amor, que lindo enredo, comece a pôr no papel, vislumbro um grande sucesso. (Desliga, está aliviadíssimo por isso. Suspira, feliz, e se espreguiça como quem quer dormir. Soa o interfone, com seu sinal de luz anterior e a voz de Ana Lúcia.)
Voz
Chefe, seu Eliseu chegou.
Valfrido
Mudo aí?
Voz
Yes.
Val
Numa aí?
Voz
Yes, saindo do banheiro. Deu a descarga.
Valfrido
Mande entrar Eliseu. Entretenha Numa, conte seus amores pra ela.
Voz
Não tenho, senhor. Yes, senhor.
Valfrido levanta-se para receber Eliseu, que entra carregando uma maleta. É um homem jovem, bonito e simples, claramente fora de seu ambiente.
Valfrido
Amigo Eliseu, fez boa viagem?
Eliseu
Viajei a noite inteira, seu Valfrido.
Val
(Cordial.) Por sua culpa! Era simples, ia a bê-agá, pegava o avião. Pagamos tudo, meu amigo, providenciamos a passagem.
Eliseu
Não gosto de avião, fico nervoso. Voei uma vez, me deu um troço aqui. (Na barriga.)
Val
Seu filho voará sem parar. É melhor ir gostando de avião.
Eliseu
Eu é que não vou com ele, fico nervoso. Ele é cabeça fresca, eu não.
Val
Seu filho vai passar mais tempo no ar que no gramado, pensou? Hoje cá, amanhã no Japão.
Eliseu
Não quero pensar, fico nervoso.
Val
Pegou táxi, não? (Ele faz que sim.) Ana Lúcia vai lhe reembolsar. Quanto foi?
Eliseu
Quarenta e oito.
Val (No interfone.)
Ana Lúcia, traga cinquenta reais para seu Eliseu. (Desliga.) O táxi lhe reembolsamos já, as passagens foram pagas e o que mais precisar cobrimos aqui. Você terá uma grana extra que lhe pagaremos hoje também. Bom assim?
Eliseu
Muito lhe agradeço. (Ana Lúcia entra, fecha a porta e entrega os 50 para Eliseu; vai sair, mas ele a chama e revira o bolso.) Foi 48, tem troco.
Val
Deixe disso, amigo Eliseu.
Eliseu
Comigo é assim. (Conta o troco em moedinhas que soma na palma da mão; enquanto isso, Valfrido e Ana Lúcia trocam sinais a respeito de Numa além-porta. Ela recebe as moedinhas e sai, cuidadosa ao abrir e fechar a porta. Valfrido a olha e vigia a porta.)
Val
Já cuidamos de tudo para você. Vai ficar num hotel ótimo, o melhor café da manhã de São Paulo, a melhor ducha quente. Cai água que nem cachoeira, chuá.
Eliseu
Disso eu gosto.
Val
Cuidado com o controle da ducha. Sei de um sujeito que entrou direto embaixo e se pelou todo, ui, ui. Tempere de fora, só entre depois.
Eliseu
Pode deixar. Sou mineiro, desconfiado.
Val
Cama com colchão pneumático, já pensou? (Faz gesto ondulatório.)
Eliseu
Não sei o que é.
Val
Logo saberá, não vai querer outra vida.
Eliseu
Gosto da minha vida.
Val
Frigobar, ou seja, geladeira no quarto do hotel. Beba o que quiser, coma o que houver, o que não houver peça pra copa e receberás. Recomendo o sanduíche de lombinho. O Escritório Valfrido, este, cobre tudo. Se quiser, encha o bucho sem sair da cama.
Eliseu
Vou beber, vou comer, com moderação.
Val
Quer mulher? Providenciamos mulher.
Eliseu
Tem mulher? (Olha em volta.)
Val
Tem tudo. Não é daqui, nem do hotel, pertence ao pacote vip externo, a depender da vontade do freguês. Você é vip. Quer? Mulher?
Eliseu
Gosto da que tenho.
Val
Mas você é viúvo.
Eliseu
Sou viúvo.
Val (Levando Eliseu à janela, mas parando no caminho para falar.)
Digo isso porque um rapaz que agenciamos exigia mulher, não vinha a São Paulo sem mulher pra ele. Não me cabe arrumar mulher pros outros, mas era um lutador do UFC, providenciamos mulher. Vai que ele dava com o pé na minha cara se ficasse sem mulher… Veja isto. Isto é São Paulo! O rio, a ponte, os cabos de aço da ponte, os prédios chanfrados. O rio até parece limpo.
Eliseu
Dá peixe ?
Val
Periga dar. No Natal eles iluminam os cabos e fazem outras graças, águas coloridas cambiantes e saltitantes dançando hula-hula. Chamo meus sobrinhos pra ver daqui.
Eliseu (Olhando.)
Beleza, os prédios na água do rio. São Paulo! Estou em São Paulo!
Val
Você conhece São Paulo?
Eliseu
Vim uma vez, na mocidade.
Val (aponta)
Viu o guarda na patinete? Aquele?
Eliseu
Não vi. (Olha.) É uma patinete?
Val
Motorizada. O bicho fica nela, pra lá e pra cá. Que vidão, não dá um passo! Se chove, bota capa e capuz e continua deslizando.
Eliseu
Eh, São Paulo! Inventam cada coisa! Patinete pra guarda.
Val
Ano passado fui a Cingapura. Os prédios de Cingapura, meu amigo, a roda-gigante, maior do mundo, seu filho vai lá. Vê aquele, um pouco mais baixo? Nele você vai dormir, sobre um colchão de ar. Fiz questão de que de lá, de uma janela, você me visse.
Eliseu
Pra quê?
Val
Pra nada. Pra fazer tchauzinho. (Acenando.) Salve, Eliseu, tô aqui!
Eliseu
Eh, São Paulo!
Val
Você devia ter trazido sua nova mulher, Eliseu.
Eliseu (Olhando a paisagem e acenando também.)
Pois é.
Val
Quer uma de aluguel, pra aproveitar o colchão? Os casais navegam no colchão, uma delícia. Não é preciso iniciativa, o colchão inventa! Os lençóis alvíssimos te dão a sensação de que a mulher é só sua, que vocês se amam em lua de mel, é o amor! Te arrumo a mesma do lutador, ela aguenta porrada, ah, ah, ah. (Arrepende-se da piada.) Não supus que você dá porrada.
Eliseu
Bem me disseram que em São Paulo é fácil mulher. Não quero, fico nervoso.
Val
Você é que sabe. Mas também, o colchão é tão bom, que até sem mulher… Se mudar de ideia, avise pra alugar uma.
Eliseu
Eu trouxe a fita do garoto. (Caminha para a maleta que deixou na entrada.)
Val
A fita do garoto, maravilha. Ficou boa?
Eliseu
Muito boa. O garoto não dá bola fora.
Val
Com certeza. Tive referências dele. Excelentes referências, Eliseu.
Eliseu
É vocação, doutor Valfrido. Esse garoto foi um milagre que me aconteceu, pena que a mãe tenha morrido faz dois anos… Nem bem ele nasceu e já mexia as perninhas como um craque. Eu disse: “Vai ser craque!” Foi. (Tira da maleta a fita e acena com ela.) O senhor vai ver. Alguns podem falhar, meu menino, não.
Val
Vou apostar nele, Eliseu, não tenha dúvida. E ainda bem que sou eu. Nesse ramo como em todos há malandros, mas eu tenho uma tradição, eu tenho. (Ainda à janela.) Não é magnífica, São Paulo? No tempo de eu menino, São Paulo era o Viaduto do Chá, o Banco do Estado. Ai de mim, o Prédio Martinelli, em cima do bicho passou o zepelim. Este é São Paulo hoje. Não tarda e seu filho será o rei daqui, pensou? Ou o rei do Rio de Janeiro, de Belo Horizonte, o rei de Roma. Enfim, rei. (A porta abre fortemente empurrada e Numa entra, seguida pela secretária Ana Lúcia. Está possessa e agita a bolsa como quem vai agredir com ela. Eliseu, mais próximo, se assusta e recua.)
Numa (Para Valfrido.)
Quem pensa que eu sou? Que eu sou uma cretina que fica fora e tudo bem? Que eu só tenho que esperar e mijar? Eu tenho meus direitos, cara, eu bem que tenho. Se isto existe, eu ajudei a fazer isto, cara.
Val
Numa… querida?
Numa
Você ganhou muito dinheiro à custa de mim e agora eu fico lá, esperando como um poste? Qual é a sua, cara? Sou poste? Cachorrada é contigo, mije no poste. (Oferece-se como poste para isso.)
Val
Numa, querida, temos visita. Seu Eliseu é pai de um menino prodígio que eu vou agenciar colhendo as glórias do mundo. Ele viajou a noite inteira para estar aqui…
Numa
E eu? Eu vivi metade da vida para estar aqui, e estou na espera, lá. (Aponta a porta aberta para a sala de espera.)
Val
Você não estava agendada para agora…
Numa
Nunca precisei agendar. Agendar? Agora essa?
Val
Numa, querida…
Numa
Não diga “querida”! Não admito!
Val
Que posso dizer…?
Numa
Diga “Numa” apenas, apenas “Numa”, querida jamais!
Val
Acalme-se, Numa, temos visita. Seu Eliseu veio do coração de Minas, é pai de um prodígio, é um amigo…
Numa
Eu sou o quê? Eu que já fui tudo aqui? Me deixam lá, na espera… Horas! (Olha dramática para Eliseu, como se dele esperando resposta.)
Eliseu
Isso não se faz.
Numa
Horas! O senhor concorda?
Eliseu
Completamente. Quando cheguei, a senhora já estava, saiu do lavatório, voltou pro lavatório.
Val
Pegou-me de surpresa, fora da agenda…
Numa
Eu fiz a fortuna deste homem. (Aponta Valfrido.) Dei-lhe o melhor que eu tinha, a genialidade do meu pai, porque meu pai era gênio, e fico na espera. (Tem uma quebra na voz, como quem vai chorar. Aponta a recepção.)
Val
Numa, modere-se, peço-lhe.
Numa
E, não bastasse, dei-lhe meu amor…
Val
Numa!
Numa
Dei-lhe meu corpo…
Val
Numa!!!
Numa
Houve um tempo, senhor… senhor… Sua graça, por favor?
Eliseu
Eliseu, senhora. Eliseu Batista da Silva, seu criado.
Numa
Houve um tempo, seu Eliseu, em que eu não existia por mim, eu existia em função deste homem. Ele me comia todo dia, eu era dele. Comia-me aqui (indica o ambiente), ali (a poltrona reclinada) e ali (o tapete próximo à janela). Aqui (indica o traseiro). Penetrava-me como um garanhão aranhoso.
Val
Aranhoso?!
Numa
Era assim, seu Eliseu, todo dia ou noite. Agora me deixa lá enquanto fala com Sófia, a maluca das reencarnações, a Joana d’Arc do boquete. Porque eu bem sei que você falava com Sófia, Valfrido. (Olha para Eliseu.)
Eliseu
Não pode, ah não pode.
Val
Ela exagera, Eliseu. Ela aumenta pra lhe causar pena.
Ana Lúcia (que assistiu a tudo)
Seu Val, desculpe, não pude fazer…
Val
Tudo bem, Ana Lúcia, eu sei como as coisas são.
Numa (Ainda voltada para Eliseu.)
Um minotauro, penetrava-me à força na retaguarda, o senhor não imagina o que me fizeram nessa poltrona. Repugna-me olhá-la. E não era eu, era ele, coitada de mim. Meu pai genial cantou o amor, o amor corporal também, mas com torneios de linguagem, poesia e sentimento. (Apanha um livro em lugar de honra numa pequena estante, abre-o e declama.) “Ela, gazela, dele acercou-se. Despojando-se da peça íntima com agílima destreza e exibindo-se no despudor da púbis orvalhada, lhe disse fremente de paixão: toma-me!” O amor humano, seu Eliseu, corporal como é, pode ser belo, sublime e assim se realiza nas palavras imortais de meu pai. (Revira o livro encadernado, mostrando-o.) É ou não é?
Eliseu
É o que eu sempre digo, dona Numa.
Numa (Indica Valfrido.)
Já esse, seu Eliseu, abusado que é, aprofundava-se. Às vezes, muitas vezes, nem a persiana baixava e São Paulo via o que ele fazia com a pobre de mim. Aqui!
Eliseu
São Paulo, o santo?
Numa
São Paulo, a cidade. (Gesto largo indicando a cidade.)
Eliseu
Não pode.
Val
Afianço-lhe, caro senhor, há exagero em tudo isso. Ela só não exagera na genialidade do pai. Não sou abusado, muito menos aranhoso. Aranhoso, benza Deus! Era um gênio, o pai, a nação o homenageia. Mas…
Eliseu
Vou-me embora. (Abre a maleta correndo um zíper rascante, enfia nela a fita e fecha o zíper.) Pego o ônibus do meio-dia.
Val
Como pega?! Nem conversamos ainda. O senhor tem um contrato para assinar…
Eliseu
Não assino.
Val
Paguei sua passagem, paguei seu táxi, hotel, adiei compromissos…
Eliseu
Eu lá vou botar meu menino na sua mão? Pro senhor enrabar ele?
Eliseu
Meu senhor, sou um empresário, não sou um monstro. Esta senhora herdou do pai genial a imaginação sem limites. Fizemos amor, sim, mas eu a amava, Eliseu. No passado, no passado. Eu a amava, amo ainda, quanto é possível amar uma tal criatura. Amava e amo o pai dela, a obra do pai. O pai morreu; porém, para mim, viverá sempre. Para o mundo viverá, deixou sua obra magnífica. (Pega o livro e o mostra, abre e lê.) “Fremente de paixão, toma-me.” Esse trecho é tão emocionante que o livro, aberto ao léu, abre nele. “Orvalhada!” (Demonstra a abertura do livro na página.) “Toma-me.” (Dá um passo na direção de Eliseu, que recua.) Já nosso amor, meu e desta senhora, esse ainda vive, só que morreu, não existe como realidade carnal pra nenhum de nós, que se há de fazer, é a vida… O pai genial, sim, sua obra vive, e viva que vive!
Numa
Viva que vive, porque lhe dá lucro.
Val
Porque enriquece o país espiritualmente. É o que não canso de dizer.
Numa
Meu pai foi, é Carlos Augusto Montalvo, seu Eliseu. Mineiro como o senhor, como João Guimarães Rosa.
Eliseu
Já ouvi falar de João Rosa, mas ouvi também de Augusto Montalvo, orgulhos de Minas. É nome de rua, não na minha cidade.
Val (Indica Numa.)
Augusto Montalvo, um grande escritor, pai de Numância Montalvo, esta senhora, paulista mas mineira de sangue. Ela, filha única de Montalvo até segunda ordem, ela própria é escritora, ganhou prêmios. Escreveu “Borbulhas n’alma”, que esteve por uma semana na lista dos mais vendidos da Veja.
Numa
Duas semanas!
Val
Duas semanas.
Numa
E na lista ficaria se não tivesse esse título horrível, que você escolheu, você impôs.
Val
Peguei uma frase do livro.
Numa
Uma frase é uma frase, está no contexto. Não servia pra título.
Val
Ademais, ene apóstrofo, “n’alma”, é criativo pra burro.
Numa
É uma merda.
Val
A maldita mídia, que o PT faz bem de esculhambar, implicou com o título. A mídia!
Numa
Fiquei sendo a mulher das borbulhas. Recebi um e-mail desenhado, eu borbulhosa! Borbulhoso é tu!
Val
Quem liga para piadas da mídia? Da mídia eletrônica? Vale a eternidade. E, caro Eliseu, “Borbulhas n’alma” é eterno, como a obra do pai desta senhora, Montalvo. (Inclina na estante outro livro, sem tirar.)
Numa
Jamais chegarei perto da eternidade de meu pai. E é justo, ele era gênio. Comparar-me a meu pai é diminuir meu pai, não admito!
Eliseu
Augusto Montalvo, sim, conheço o nome. Mesmo eu que sou do futebol ouvi falar.
Val
Todos ouviram falar. Fui amigo do pai dela, tenho quilos de fotos com ele, de manuscritos, bilhetes a mim endereçados, guardei, são relíquias. “Caro Valfrido, escrevo-lhe da Velha Albion.” Trabalhei em favor de Augusto Montalvo, orgulho-me disso. Sou um empresário e agente literário respeitado até em Nova York. E meu orgulho maior, profissional e humano, é ter contribuído para a fama e glória do pai desta senhora, seu Eliseu.
Numa
Seu orgulho é ter comido a filha de Augusto Montalvo…
Val
Não.
Numa
…com borbulhas n’alma e náldegas.
Val
Nada disso. É ter publicado a obra genial de Montalvo em mais de noventa países.
Numa
E embolsado a receita de oitenta.
Val
Ele é nome de rua… de rua, não, de um viaduto na Romênia, seu Eliseu. Esqueci como se diz “viaduto” em romeno, mas tenho fotos do Viaduto Augusto Montalvo, na Romênia. No viaduto começou um amor num livro de Montalvo, em meio às brumas do entardecer romeno, e a Romênia por isso o fez patrono do viaduto. O rapaz brasileiro na história de Montalvo não falava romeno e ainda assim brotou viçoso o amor pela linda romeninha. Boa vontade romena com o Brasil de Montalvo, o viaduto. Homenagem.
Numa
Ele roubou meu pai.
Eliseu
Jamais roubei seu pai.
Numa
Vendeu livros pro governo e embolsou. Toda biblioteca pública do Brasil tem a obra completa de Augusto Montalvo, mas a família passa fome. Vendeu livros pro exterior e nunca prestou contas justas, prestou contas fajutadas.
Val
É uma infâmia e calúnia, isso. A família é rica. O pai dela é uma glória nacional, traduzido para 54 línguas: cinco, quatro. Graças a mim! Tem Montalvo em língua quíchua, em esquimó! Só não ganhou o Nobel porque morreu antes. Não foi pra Academia Brasileira porque esnobou a Academia, se recusou a fazer visitas pedinchando voto. Soberbo Montalvo! Queria ser aclamado sem curvar-se jamais: “Vinde a mim os pequeninos!”. Como eu prejudicaria uma tal instituição humana, Augusto Montalvo? Instituição nacional, Augusto Montalvo? Como eu poderia? (Põe o dedo numa foto na parede, de grupo de pessoas.) Este senhor. Felicito-me de cá constar, em sua excelsa companhia, Augusto Montalvo. Este.
Numa
Prejudicar foi o que fez, além de comer Numância Montalvo, esta. (Põe o dedo na vagina.)
Valfrido
Eu articulei as traduções, cobrei os direitos autorais, que fluem sem cessar e lhe são repassados. Direitos autorais de paisinhos mesquinhos, ditaduras orientais que escondem a grana, árabes beduínos do deserto, fui atrás, pagaram. Pagaram com meu suor no Saara, meu risco de morte no lombo de um camelo.
Numa
E embolsou.
Val
Nem você jamais me acusou. Acusa agora, que o fluxo diminuiu, depois de tornar rica a família Montalvo. Você faz compras em Miami e espicha pra Quinta Avenida. Sua mãezinha viúva viaja com a amiga pra Europa todo semestre, e paga a passagem da amiga, a hospedagem, o perfume de Milão caríssimo. Me acusam agora, quando eu estou aflito, agoniado, as dívidas crescem, abro essa porta e invade-me o fedor do perfume de Milão, a conta. Agora acusam.
Numa
Não tinha provas, pra sonegar você é competente. E pra me enrabar aí, foi competente. (A poltrona.)
Eliseu
Os senhores lavam a roupa suja.
Val
Cheirando a perfume de Milão.
Eliseu
Não quero saber, vou-me embora pra minha terrinha e minha casinha. Não me acostumo com a gente daqui. (Pega a maleta de novo.)
Val
Eliseu, meu amigo, você não conhece São Paulo, a cidade. Não conhece os artistas de São Paulo, os intelectuais, os prósperos, sua fauna humana metida a besta, sua burguesia com seus carrões. Essas pessoas aqui, vou lhe ser sincero, são… cínicas. Exageradas, gozadoras, entende? Elas falam coisas em que não acreditam, falam por falar, para causar impressão. Xingam-se, depois vão beber cerveja. Eu amei esta senhora, oh, como a amei! Ela até me traiu uma vez e eu perdoei.
Numa
Valfrido, para com a roupa suja.
Val
Eu a amava. Oh, céus, a amava demais. Porque ela cá está, com esse jeito mandão de presidenta da República, mas sabe ser mulher, bem que sabe, quando quer. Sussurrou-me no ouvidinho ternos gemidos sensuais, ui, ui, mais, mais.
Numa
Não desça a baixarias, infame. Não seja mau-caráter além do que já é.
Val
Ela gosta das baixarias, por isso as digo, mais, mais, ui, ui, no rabinho, amiguinho. Eu quis casar com ela, já era casado, sou casado, meio separado. Fizemos amor aqui, confesso, três ou quatro vezes…
Numa
Trezentas. Não diminua nas trepadas como diminuiu nos livros vendidos.
Val
Fizemos para celebrar o ambiente, dar sorte. Este é um escritório que precisa da sorte contra o azar, porque aposta em talentos e os talentos são… furtivos, esquivos. Publiquei um outro sujeito que vendeu a primeira edição em duas semanas e encalhou a segunda edição, até hoje, tá lá encalhada no depósito, ele teimou em ser esotérico em tempos de evangélico, ou o contrário. E o sujeito me joga na cara que não vendo seu esoterismo.
Eliseu
O senhor devia publicar as vidas dos grandes craques do futebol.
Val
Craque não tem vida, tem gols. Faz muitos anos já, amigo Eliseu, não aqui, mas no centro velho de São Paulo, subia-se pela escada no último andar, apostamos em Augusto Montalvo, mineiro como o senhor. Escrevia ótimas histórias de um jeito complicado, entre o alfabético e o escalafobético. Inventava palavras. Cultivava impulsos místicos de sensualidade, seus acasalados trepavam rezando. (Faz a mímica disso.)
Numa
Cafajeste, respeite meu pai, não deboche das suas trepadas transcendentais!
Val
Dentais, ele mordia. Daria certo, Augusto Montalvo? Pois não é que deu? Então prosperamos e Augusto Montalvo mais ainda, comprou sítio, apartamento de cobertura, viajava todo ano pra Jamaica. De minha parte comprei este escritório no novo cartão-postal de São Paulo. Eu estava no auge do amor pela filha única de Augusto Montalvo, a filha querida Numância, homenagem à Espanha e a Cervantes. Oh, por ela eu abandonaria meu lar, eu… Faria qualquer coisa desatinada. Fiz isso, desatinado: fizemos amor aqui, eu e Numância, Numa, esta. Aqui. E acolá, no colchão pneumático. (Gesticula ondulante para a janela.) Os amantes acreditam nessas coisas, que o local em que se exerceu o ato do amor se… se sacramenta.
Numa
Sacramenta, pois, pois.
Val
Sacramenta, exatamente.
Numa
Excrementa. Você peida aí. (A poltrona.)
Eliseu
Os senhores antes se arranjavam sem mim, continuem. (Pega a maleta.) Volto pra lá.
Val
Como volta? Acabou de chegar!
Eliseu
Ontem fui fazer barba e cabelo na minha terrinha, ia viajar, sabe o que o barbeiro Heliodoro me disse? Ele disse, “muito cuidado, Eliseu amigo, se o home lá te oferecer tudo, prometer o mundo e o fundo, abre o olho. Ele pode te engrupir, cai fora”.
Val
É natural que as pessoas desconfiem. Mas você logo vai ver, Eliseu, que nos negócios bem-feitos todos ganham, não é preciso que um passe a perna no outro. Todos compram sítio, todas fazem compra na Quinta Avenida, as viúvas se perfumam em Milão. Seu menino prodígio será prodigiosamente rico e você também, podes crer.
Eliseu
Meu barbeiro disse mais, ele é ladino. Disse, “se quiserem te dar mulher pra passar a noite, é batata: estão engrupindo você. As putas de São Paulo ajudam os negócios”.
Val
São Paulo não tem putas, tem mulheres sensuais.
Numa
Obrigada pelo que me toca. Seu Eliseu, reconheço que eu estava exagerando. Eu não recomendo para nenhuma mulher que ame este homem, é um amante cruel. Mas não é um negociante tão ladrão assim. Eu vigiei ele e meu pai ficou rico, é verdade. Não ricoooooo, mas rico. Não tão rico quanto o gênio dele merecia, faltou o Nobel, mas rico. Se o senhor quiser, me dê procuração e eu vigio as contas do seu filho para o senhor.
Eliseu (Para Val.)
O senhor concorda?
Val
Se eu concordar, amigo Eliseu, você vai pensar que esta nossa briga de antigos amantes é um truque combinado. Vai pensar que somos amantes ainda e estamos fingindo uma briga pra “engrupir” você. O seu barbeiro Heliodoro vai confirmar isso, aumentar, e você mais raiva sentirá de mim.
Eliseu
Não penso uma coisa dessas, patrão.
Val
Não pensa porque você é uma pessoa boa. Ainda assim poderia pensar, você está entrando num mundo perigoso, Eliseu, o mundo dos negócios e do dinheiro. Quero lhe dizer que eu concordo, sim, com esta senhora Numância conferindo as contas, todas as contas. Não tenho o que esconder, ganhamos unânimes com isso. Aceito a fiscalização e vou pagar um pró-labore para dona Numância checar as contas, está bem assim? Tudo passará por ela, se o senhor quiser. Ela sabe fazer contas, contava o dindim do pai e me enchia o saco por centavos. Mas só se o senhor quiser, dona Numância não está aqui para se meter nesse negócio. O negócio dela é o bastardo, não é o prodígio seu filho, e do bastardo trataremos às quatro da tarde, não agora. (Para Numa.) O bastardo, dona Numância, não o prodígio. Às quatro, como a senhora está agendada.
Numa
Do bastardo cuidaremos.
Eliseu
Pode ser.
Val
Pode ser o quê, Eliseu?
Eliseu
Ela pode ajudar nas contas e ganhar algum nisso. Confio nela.
Val
Mas… mas com ela é o bastardo!
Numa (para Eliseu)
Obrigada, o senhor é um amor. Dispenso o pró-labore, faço de graça. E saiba que quando faço de graça, faço bem! Gostei do senhor, seu Eliseu. Alguma coisa no senhor é limpa, autêntica. Nem entendi o que o seu filho faz, mas gostei. Por acaso é um menino prodígio da música, toca violão, canta? Música e violão é coisa de vagabundo mas dá dinheiro, se for uma bosta sertaneja.
Eliseu
Meu filho joga bola, dona Numa. Tem o dom da bola. Vai ser o melhor do mundo daqui uns anos.
Val
É um craque da bola. Um virtuose do século 21, com a vantagem de que não escarra sangue como o pianista Chopin. E é fácil de entender nas habilidades machas, sem as firulas de linguagem inventadas pelo gênio seu pai que atrapalham nas traduções. Os livros atrasavam nas traduções! Da China ligaram pra mim: o que é isto que Mister Montalvo escreveu? Eu lá sabia? Botem a chatice que quiserem.
Numa
Santa ignorância! Um gênio, ele, montado num asno, tu.
Val
O garoto faz firulas compreensíveis, não as afrescalhadas de Augusto Montalvo. (Controla uma bola imaginária com pés e pernas.)
Numa
Você nunca entendeu meu pai. Entendia o dindim que ele trazia, ele mesmo disse. Disse que você não leu dez páginas de cada livro dele, no português dele, não no chinês. Cinco páginas!
Val
Cinco páginas eu li, sim senhora. Dez, já não juro…
Numa
Leu cinco da obra completa.
Val
Mais! Eu lia as sacanagens. Ele era sacana em muitas páginas.
Eliseu
Mas meu menino é um gênio, todos dizem. O senhor disse.
Val
Um gênio, sem dúvida.
Numa
Um gênio?!
Val
Sim, querida, um gênio. Seu pai tem sucessor, o filho de Eliseu, treze aninhos.
Numa
Já não basta a ironia de me chamar “querida”?
Val
E eu terei a honra de promover um gênio depois que o outro virou nome de rua. Nunca supus que teria novo gênio na mão, agora tenho, o menino de Eliseu, gênio do pé.
Numa
Um gênio à altura do seu entendimento. (Faz a caricatura de uma firula do futebol.)
Eliseu
Fazem piadas com meu filho? Dão risada dele ser o que é? Dele não ser doutor? Pois ele é um craque. Ele um dia vai ter multidões gritando seu nome, herói da pátria na Copa, desfilar em carro de bombeiro. (Pega de novo a maleta que tinha largado.)
Val
Certamente que sim e ainda bem! De uns tempos pra cá, apanhamos sem dó na Copa. Nossos rapazes descem em Cumbica e só a família e a tevê esperam! Mas veja, amigo, o gênio já não é tudo. Seu menino… Jáquisson, não?
Eliseu
Jáquisson, sim.
Val
…Seu menino tem treze anos e quatro meses, na fase aguda do crescimento. É urgente trabalhar seu corpo, sem esquecer sua alma.
Eliseu
A alma vai bem, ele reza. Já não tem mãe, mas vigio isso.
Val
A alma e o espírito, falo da cabeça dele.
Eliseu
É boa cabeça! Cabeceia muito bem.
Val
Não basta a cabeça boa para os combates comuns, esses de todos os meninos. Ele terá combates especiais, fora do campo de batalha do futebol. Oxalá fosse apenas no campo. Ele vai lidar com a fama que cai no colo, o dinheiro que cai, as mulheres. Sim, as mulheres, e não serei eu arrumando mulheres pra ele, avise seu barbeiro. As mulheres vêm por si aos garotos de fama. Eles deitam na cama pra dormir, elas estão debaixo da cama. E logo engravidam por artes do prodígio seu filho, as marias-chuteiras.
Eliseu
E vêm meus netos da pouca-vergonha, as bebidas, as drogas, as más companhias da bandidagem, já sei. O barbeiro disse.
Val
Mesmo um gênio de outro tipo, gênio das palavras obscuras e piedosas trepadas, Augusto Montalvo, deu de beber depois da fama, fumou e cheirou o que pôde e desandou com mulheres. Era adulto, velhusco, superinteligente, gênio, e caiu na rede das mulheres. Até das jamaicanas! As mulheres são a desgraça dos homens bons. Não é mesmo, Numância?
Numa (Irritada.)
Não precisa pôr meu pai na gandaia.
Val
Você contou isso na biografia dele! Você! (Pega outro livro na estante e o exibe.) “Augusto Montalvo, meu pai”. Subtítulo: “Um gênio na contramão”. Autoria: “Numância Montalvo”.
Numa
Eu posso contar, eu conto com amor, você conta pra esculachar.
Val
E os dentes, Eliseu? É preciso cuidar dos dentes de Jáquisson.
Eliseu
O que tem, os dentes dele? Estão todos lá.
Val
Podem ter focos de bactérias. Descobriu-se cárie no canino.
Eliseu
Como sabe? Aparece na foto?
Val
Tenho minhas fontes, e fotos. Você não sabe, investiguei seu menino. Teve sarampo aos oito, escarlatina aos onze. Caxumba que desceu.
Eliseu
Desceu mas não ficou broxa. Sarou total. Já põe nas coxas das coleguinhas, me contou, e põe rijo. Com o maior respeito do cabaço delas.
Val
Eu sei, eu bem sei.
Eliseu
Como assim? Espiou ele? Como espiou?
Val
Mandei espiar. Não, claro, as encoxadas rijas. Mandei espiar, porque o organismo dele tem que ver com os meus negócios. E para isso há um custo. Estou investindo no seu menino faz quatro meses, Eliseu. Pus dinheiro aí que você nem faz ideia. Essa fita que você trouxe, a bem dizer não precisava. Um “olheiro” meu andou por lá, em Formiga, filmando o menino de dentro do carro, no bate-bola da quarta-feira. Sentou na beira do campo, o “olheiro”, coçava o saco. Não era o saco, era uma câmera ligada. Não perceberam em Formiga.
Eliseu
Como não? O barbeiro sabe. Ninguém coça o saco com um dedo só.
Val
Desconfiaram.
Eliseu
Truque demais em riba do menino. Vai que sequestram ele…
Val
Foi uma espionagem a favor do espionado. Fizemos um check-up do seu garoto antes de chamar você aqui. E ele mesmo não soube. Examinamos a urina dele, a saliva. Colhemos a urina no vestiário. A saliva no gramado. Os jogadores têm a mania de cuspir no campo, o seu cuspiu.
Eliseu
Craque cospe.
Val
Recolhemos, examinamos.
Eliseu
Ele nunca precisou se dopar.
Val
Não pensamos em doping. Queríamos uma checagem completa, saber do sangue bom ou ruim dele.
Eliseu
Se fosse ruim?
Val
Nada feito.
Eliseu
Se não fosse bom de bola, um craque?
Val
Não chamavam. Nem pisavam em Formiga.
Eliseu
Vou embora. (Pega a maleta.) Não quero meu garoto espiado.
Val
Espiado ele continuará sendo, é o destino dele. Vão xeretar cocaína em todo mijo de pós-jogo. Mas a fase inicial passou. Seu garoto foi aprovado, parabéns, você está aqui. Pagaremos os dentes, ele tem uma panela no canino.
Eliseu
Devo agradecer?
Val
Seria justo agradecer. São milhões de pais querendo filho craque Brasil afora e você aqui. Fique feliz, homem. Já lidei com um pai que queria o filho famoso e o filho era escrofuloso, pulmão fraco, nada feito. Com seu filho aprovado, obturado, tratado, treinado, logo você dará gorjetas gordas ao barbeiro.
Eliseu
O garoto quis vir junto, não deixei. O barbeiro disse pra não trazer.
Numa
Muito bem! Ele só pisa aqui com contrato assinado e “luvas” pagas.
Eliseu
Como a senhora sabe?
Numa
Sei também que foi ideia do barbeiro.
Eliseu
E foi. Então eu não trouxe ele. O senhor já tem o contrato aí?
Val
Está aqui, amigo Eliseu. Quer ler e assinar?
Eliseu
Vou ler no hotel, se o senhor não se importa. Assinar, amanhã.
Numa
Vai ler no telefone para o barbeiro.
Val
Eliseu pode ler pra quem quiser, é um papel honesto, bom para ambas as partes. (Pega da mesa o contrato e o estende a Eliseu.) Leve, leia no hotel, converse à vontade no interurbano, o Escritório Valfrido Lopes, este, paga tudo. Esgote o frigobar, tem um suquinho de uva com teor alcoólico. Temos firmas a reconhecer, você fica em São Paulo até depois de amanhã.
Eliseu (Pega o contrato, abre a maleta, guarda-o e tira outra vez a fita.)
Obrigado, patrão. Queria que vissem meu filho assim mesmo.
Val
Veremos já. Seu filho é o artista, vamos apreciar a sua arte que há de encantar o mundo. Mas ele tem treze anos, demora uns três até dar frutos. Nesses três, só vou ter despesas com ele e não são poucas. Considere isso ao ler o contrato. (Enquanto fala, cuida de ligar o televisor para pôr a fita, no que se revela incapaz e é ajudado por Ana Lúcia que vem da outra sala; ela é muito mais eficiente.)
Numa
Avise o barbeiro.
Eliseu
Eu não sou uma mula manca que depende do barbeiro. Heliodoro é meu amigo, mas eu tenho raciocínio. (Bate na testa.)
Faz-se um silêncio rápido, como se Numa e Val pensassem no que ouviram. Val bate palmas.
Val
Assim é que se fala, amigo Eliseu. É o que eu lhe dizia, os cínicos da capital. Eles se provocam, se cutucam, mas não levam as coisas a sério. Reaja a eles, responda à altura.
Eliseu
Vou reagir.
Val
Outra coisa, Jáquisson vai ter que falar línguas, inglês é fundamental, italiano, espanhol… russo, russo é importante.
Eliseu
O garoto não é de estudo, não. Negócio dele é a bola e eu aprovo. Se estuda, penso que tá doente.
Val
Tá doente. Lhe arranjamos uma namorada inglesa, depois uma italiana e assim vai. Russa, conheço uma Liudmila de Moscou. Nada de estudo. Aprende em cima do colchão pneumático, blá, blá, blá, babucha, cabucha, xoxótski, esporretóski.
Numa
Seu russo, pelo visto, é pior que seu inglês.
Eliseu
Não sei, não. Mulheres? Acabam com o gás do garoto.
Numa (Para Val.)
Não tem vergonha de passar suas putas eslavas pra um garoto?
Val (Para Eliseu.)
Eliseu, amigo, vê como é São Paulo? Esta moça graciosa, meiga às vezes, diz coisas monstruosas em que ela mesma não acredita. Liudmila é uma russinha também meiga mas nunca cruel, filha do meu amigo russo Alexei, boníssimo, cultíssimo, fala seis línguas. Ela, Liudmila, aprendeu inglês em Oxford, é uma graça de garota virginal. Pensei numa amizade, num primeiro amor de pegar na mãozinha, de fazer coraçãozinho quando marca gol. (Faz coraçãozinho comemorando.)
Numa
Um amorzinho neste valhacoito ininterruptus?
Eliseu
Melhor deixar o garoto fazer suas escolhas.
Val
Aí é que está. Garotos comuns fazem escolhas na vizinhança. Seu garoto não é comum. Se ele pode namorar e aprender russo, por que não? Se bem que não se manda um jovem craque pra Rússia, faz frio danado lá e a Rússia é a Sibéria das glórias futebolísticas. O paraíso é a Espanha, a Itália… (Entoa uma tarantella, até dança. A instalação da fita está concluída e as imagens, que o público não vê, começam a aparecer. A secretária Ana Lúcia havia voltado para seu posto na sala de espera, mas entra apressada e vem sussurrar no ouvido de Valfrido.)
Eliseu (Os olhos fixos na tela.)
Jáquisson, esse. Meu garoto. Eu joguei e não era mau. Mas Jáquisson! Deus faz uns milagres que não entendo. Tenho outro, Ericsson, quinze anos, é bom aluno na escola, não é craque.
Val
Gente boa, tenho que me ausentar uns minutos. Vou ao telefone na sala de espera. Continuem vendo, já volto. Ana Lúcia, senta aqui, veja enquanto eu atendo. (Sai.)
Eliseu (Ofendido.)
Se o dono do negócio não assiste, melhor é parar de ver e esperar.
Numa
Também acho. Podemos fazer pausa enquanto o dono telefona.
Ana Lúcia
Eu posso apertar “pausa”, mas é capaz que demore.
Numa
É ligação internacional?
Ana Lúcia
Não.
Numa
É Sófia?
Ana Lúcia
Não sei.
Numa (Convicta.)