Pode o teatro ser uma celebração?
A resposta ganha contornos e relevos distintos à medida que se entende a temática e a equipe criativa que dão estofo a determinado espetáculo. Peguemos como exemplo o trabalho do Teatro da Margem, grupo de teatro potiguar que, em seu espetáculo inaugural, versa sobre a diversidade e complexidade de identidades, desejos, formas de expressar afeto, de entender e de navegar pelo mundo, da comunidade LGBTQIA+.
Em Disque Q Para Queer o coletivo brinca com a interatividade do Zoom e oferece ao público um cardápio de 9 cenas, das quais 4 serão exibidas em cada sessão, escolhidas através da votação do público. Apoiado fortemente na relação direta com o fruidor, o espetáculo depende da participação do espectador não só na votação das cenas, mas na instauração da atmosfera como um todo: é essencial para que o espetáculo atinja seu potencial que o público interaja no chat, responda às músicas, ligue as câmeras, enfim, faça parte da celebração proposta.
Ressignificar aspectos distintos da jornada de indivíduos LGBTQIA+
A celebração, uso esta palavra mais uma vez aqui para deixá-la bem marcada, é essencial na mensagem e na experiência de Disque Q Para Queer, porque auxilia a ressignificar ou a ressaltar aspectos distintos da jornada de indivíduos LGBTQIA+, presentes no elenco ou na plateia. Em pleno 2021, é inegável que pessoas cujas identidades e desejos não se inserem nos espectros cis e hétero seguem sofrendo preconceito e violências (ora veladas, ora não) fora e dentro da própria comunidade. Citemos como exemplo, dentre inúmeros possíveis, as pautas bissexuais contra o apagamento de suas existências e contra o chavão de que a bissexualidade é sinônimo de promiscuidade.
À medida em que questões de gênero, classe e raça vão sendo adicionadas à discussão, mais e mais relevo ganha a topografia do espetáculo. A cena Para Ver Um Corpo Preto Gozar, apresentada na sessão que eu assisti e à qual este texto se refere, investiga as intersecções de sexualidade e negritude. Ela discute o olhar racista e fetichizado que ainda hoje tem espaço no Ocidente e que insiste em objetificar e pautar papéis a serem cumpridos e modos de se relacionar a serem performados – basta ver a indústria de filmes pornográficos ou bios de aplicativos de relacionamento.
Celebração dos corpos brasileiros
O interessante nesta cena é que se trata de uma das mais pungentes do espetáculo. Todas, obviamente, têm sua força e explicitam a urgência de suas pautas, mas está em questão tem um caráter afirmativo, de quem recusa padrões e estabelece os limites sobre seu próprio corpo, de quem reivindica para si a autonomia de sua carne para além das relações de atração/repulsa, fetichização ou consumo. Porém, não só isso: ela é também uma celebração – essa palavra de novo – dos corpos negros, da potência de seus corpos, suas histórias, sua ancestralidade e seu futuro.
É muito interessante que esta cena termine em uma dança. Não só por todas as simbologias que a dança carrega, ainda mais no contexto da cena, mas pelo senso de comunhão que instaura. Veja: aqui estamos, numa experiência virtual, cada qual em sua casa, mas ainda existe certa potência de união, de coletividade, ao pedir para que todos os presentes na sala abram suas câmeras e dancem.
Existe potência ao pedir que todos celebrem.
Esta é uma das maiores forças de Disque Q Para Queer: o uso da música, do humor, do despojamento e de outras estratégias de aproximação para falar sobre vivências, identidades, jeitos de existir no mundo. O uso do teatro como meio de celebrar estas vivências.
O uso do teatro como articulador de pulsões de vida.
*Fernando Pivotto é artista, educador e crítico. Desde 2017 mantém o perfil Tudo, Menos Uma Crítica, onde pesquisa possibilidades de escrita reflexiva e suas relações com o público.
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