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Sergio Zlotnic comenta “Cíclico”, espetáculo de Gabi Costa

Publicado em: 24/10/2023 | por: Sergio Zlotnic

Cena da peça "Cíclico", com apresentações em 2023.

Cena da peça “Cíclico”, com apresentações em 2023. | Foto: Cléo Martins/Divulgação

Comentário sobre o espetáculo “Cíclico”, de Gabi Costa – Setembro 2023, na Oficina Cultural Oswald de Andrade

*

Quanto tem de biográfico na produção de um artista? Mesmo quando ele não quer, ou não sabe, ou não pretende?

E quando ele pretende?

*

Bem, o espetáculo de Gabi Costa é formidável tratamento de digestão simbólica, em que acontecimentos pessoais e históricos são elaborados, diante do espectador.

Acontecimentos que dizem respeito à atriz, mas que – devido à potência de seu salto – a ultrapassam, e dizem respeito então (não só a ela) também a outras mulheres e a outros homens, negros ou não.

Se o mergulho é suficientemente profundo, dizem os sábios, o pesquisador engata num lençol freático que subjaz e liga os poços de água de um país inteiro. Gabi Costa liga dois continentes.

Vê-se que a investigação da atriz é antiga, de fôlego, de impacto. Ela está implicada ali. Comprometida. Nas vísceras.

Quanto tempo ela teria levado em sua pesquisa até desembocar na temporada?

Trata-se de uma peça que exige entrega também da plateia: que ela se deixe hipnotizar. Ou que desperte para a realidade adormecida – e para as violências que hibernam, recalcadas nos porões da alma. Retirar os amortecedores habituais, parece ser o lema.

Numa exposição corajosa, Gabi Costa cria dois territórios distintos. Eles se comunicam?

De um lado, abre-se um espaço quase lúdico, mas traiçoeiro. Atravessado por questões irrelevantes (‘este copo é de cristal? – ou de acrílico?’). É a preparação para uma festa?

De outro lado, se descortina o registro denso, habitado de massa trágica, desafiando os limites do insuportável.

O trabalho da atriz é daquele tipo que demanda tempo de digestão para o espectador -, que vai processando a cada dia aquela matéria apresentada na sessão de 70 minutos. Não cabe justamente ao bom artista arrancar a plateia de um lugar de conforto?

Cena da peça "Cíclico", com apresentações em 2023. | Foto: Cléo Martins/Divulgação

Cena da peça “Cíclico”, com apresentações em 2023. | Foto: Cléo Martins/Divulgação

É o conceito freudiano de ‘estranho familiar’ que comparece e é ali costurado no palco, com competência e (melhor) sem pedagogia.

Há repetições bem a calhar, elementos que insistem, e que a atriz e dramaturga faz caber num impressionante sonho, relatado – mais de uma vez – no espetáculo.

Aquilo que se repete (porque pede ainda elaboração) serve também ao espectador: ajuda-o a compor um quebra-cabeça desafiador que a peça compõe.

E a gente vê a atriz testando alquimias, in loco, na frente do espectador, como quem experimenta receitas culinárias, conferindo os ingredientes de que dispõe.

E, na construção dessa equação, em que impasses vitais são inseridos, há liberdade para retomar e verificar sempre e novamente o que dá errado (na peça, na vida, na festa, na família, na sociedade, nos destinos humanos) -, numa notável sintonia com o pensamento de Beckett, ‘tentar de novo, falhar de novo, falhar melhor’.

É assim que, no espetáculo, graças aos deuses, muitas coisas dão errado de propósito. Inversão genial.

Por fim, não é possível deixar de reconhecer no trabalho o tema da ancestralidade. Gabi Costa parece buscar resgatar e construir um percurso retroativo. Se, da tradição de um povo, há pouco ou nenhum registro, não há escapatória: a artista inventa um percurso. Como quem tenta lembrar-se de um sonho (justamente) que, no entanto, não se deixa apanhar. Essa operação de adivinhar no escuro é talvez a essência do campo das artes: adivinhar no escuro e (Lispector diria) acreditar chorando.

Assistir às tentativas desse regate é comovente.

*

Em tempo: são ótimos e artesanais, figurino e cenografia, iluminação e sonoplastia.

Tomara o espetáculo volte brevemente em nova temporada.

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Ficha técnica

Atuação, Texto e Concepção. Gabi Costa

Direção. Mariá Guedes e Thais Dias

Cenário. Evas Carretero

Preparação Corporal. Ciça Coutinho

Iluminação. Danielle Meireles

Fotos. Cléo Martins

Designer Gráfico. Luna Ákira

Trilha Sonora. Camila Couto

Figurino. Thais Dias

Adereços. Gabi Costa e Mariá Guedes

Colaboração Artística. Meg Pereira

Orientação Dramatúrgica. Tatiana Ribeiro

Operação de Som. Camila Couto e Carolina Gracindo

Operação de Luz. Julia Orlando e Felipe Stucchi

Cenotécnicos. Evas Carretero, Murilo Inforsato e Sergio Murilo

Assistente de Produção. Lua Negrão

Bate-papo pós espetáculo. Cris Guterres e Siméia Mello

Workshop Dança Afro. Juliana Ferraz

Produção. Gabi Costa e Corpo Rastreado

Assessoria de imprensa. Rafael Ferro e Pedro Madeira

Realização. Cia La Desdeñosa

*

Serviço

A peça esteve em temporada de 6 a 16 de setembro de 2023 – quarta a sexta – 19h30 – sábados e feriados – 18hingressos gratuitos distribuídos com uma hora de antecedêncialocal: Oficina Cultural Oswald de Andrade – Rua Três Rios, 363 – Bom Retiro, São Paulo – SP

Sobre o autor

Sergio Zlotnic é psicanalista, doutor em psicanálise, pesquisador no campo das artes e investigador dos diálogos entre as artes cênicas e a psicanálise. Colaborador e colunista da SP Escola de Teatro desde a sua fundação, é ainda autor do livro de ficção “Baleiazzzul” (2013), e dos livros teórico-clínicos “Gestalt Terapia e Transferência” e “A Metapsicologia da Atenção Flutuante” (ambos de 2017). Integra o Coletivo de Teatro Cia Os Zzzlots.

Autor da coluna zzzlotnic, no site da SP Escola de Teatro. Leia seus outros textos aqui.




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