Autores: João Martins, sociólogo do Programa Kairós, e Ueliton Alves, bibliotecário da SP Escola de Teatro
Neste semestre na SP Escola deTeatro tivemos a oportunidade estudar e criar artisticamente a partir de escritos do autor indígena Ailton Krenak. Este texto traz algumas reflexões que surgiram nos encontros da atividade de contrapartida “Monitoria de Estudos do Contemporâneo” organizada pelo Programa Kairós e a Biblioteca com estudantes contemplados pela Bolsa-Oportunidade.
Qual contribuição de Ailton Krenak e dos povos originários em geral para pensarmos nosso mundo e a forma de habitá-lo? Quais diálogos podemos estabelecer entre os escritos de um autor indígena e produção teatral na Escola? Humanidade, natureza, cultura são termos universais e de uma única compreensão?
Perguntas difíceis, complexas e que, na maior parte das vezes, não as encaramos, no olho-no-olho ou ainda, dados os tempos pandêmicos, na telinha-na-telinha ou zoom-no-zoom.
Quem aí já parou para pensar o que é humano, o que nos torna humanos, o que é essa ideia de humanidade tão incógnita, mas ao mesmo tempo tão disseminada pela sociedade? E quando falamos em natureza, o que é natureza para você? Uma floresta, uma paisagem, o mar, o céu, uma árvore em meio ao território da Sede Brás da SP Escola de Teatro? Para responder isso propomos um pequeno exercício. Suspendamos as concepções que nos foram ensinadas desde crianças, tão arraigadas na nossa forma de ver e pensar, e vamos escutar as palavras de Ailton Krenak.
O que nós sabemos é apenas uma minúscula parte. Na melhor das hipóteses o que sabemos e conhecemos é apenas um ponto de vista. Desestabilizador, certo? Pois é, ler Ailton Krenak significa perde o nosso chão. Nesse sentido, o autor nos mostra como a ideia de humanidade ocidental parte de uma premissa que inferioriza os outros seres e a própria natureza. Somos superiores, por isso a dominamos – este é o Antropocentrismo. O Antropocentrismo e o chamado “povo da mercadoria” não apenas subjuga a natureza mas também os próprios humanos. Por isso se fala que os povos indígenas são “guardiões da floresta”, no sentido de que a urgência da ecologia passa pela (r)existência dos povos originários. Dito de outra forma, a defesa do direito a existir desses povos contraria a lógica antropocêntrica que avança sobre seus territórios na forma de mineração, agronegócio, etc. Desta forma, a luta ecológica é também uma luta antirracista.
Como se não fosse o suficiente, o líder indígena ainda diz que tentamos universalizar – impor a todos os povos e culturas – essa ideia de humanidade. Isso se deu de diversas facetas: com a colonização; relegando povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos à sub-humanidade, etc. Os povos originários nunca compraram essa ideia, sabiam desde o tempo da colonização que esse projeto “civilização” era uma cilada.
Se o ocidente tem essa concepção de que é humano e transforma tudo em mercadoria, por que estamos preocupados com a queda, isto é, o que nos assusta na crise ecológica? Parece que o ocidente se deu conta, sem muita preocupação, que sem “a natureza” não existe humanidade possível, mas, ao que tudo indica, vale arriscar.
O povo krenak entende a natureza de outra maneira, de forma mais ampliada, digamos assim. Tudo é natureza. Nós somos parte da natureza. Para nós existirmos não é preciso acabar com as outras partes da vida. Os povos que tem uma relação orgânica com o seu meio tem nos mostrado isso há mais de 500 anos de resistência. Em geral não se escuta, não há meios de escutá-los, diria a autora pós-colonial Gayatri Spivak. No entanto algo novo desperta no horizonte, parece que neste contexto de pandemia e de evidente colapso ambiental a cosmovisão indígena tem ganhado eco no discurso de que é preciso repensar a relação que temos com nós mesmos e com nosso meio. Não dá para seguirmos com a humanidade sendo um liquidificador, jogando tudo para dentro, batendo e moendo para o consumo.
Por que descolonizar o conhecimento da educação e cultura?
Na esteira desse pensamento, nos propomos refletir como as proposições dos saberes de povos originários e da diáspora podem contribuir para pensarmos um novo projeto artístico. Como é fazer arte a partir de uma lupa que não seja a da escola eurocêntrica, mais do que isso, nos colocamos a pensar em qual a importância disso?
Ao longo de nossas discussões notamos que na figura do Ailton Krenak encontram-se representados diversos povos que tiveram seus saberes desprezados, e que tal desprezo só serviu para alimentar uma narrativa que nunca teve a intenção de privilegiar o conhecimento, mas sim o capital e todas as estruturas políticas que dessem a ele suporte para que obtivesse êxito. Ou seja, o processo de distanciamento da natureza se deu através de um discurso hegemônico que por meio da tecnologia da racialização criou comunidades ditas selvagens, e que, portanto, poderiam a qualquer custo passar por um processo de civilização. Civilidade essa ligada aos valores tradicionais das sociedades centrais da época, nesse caso a Europa. Temos então o eurocentrismo, que nada mais é que uma narrativa única da história contada supostamente pelos autointitulados vencedores.
Impulsionados pelas ideias do intelectual Ailton Krenak o grupo de estudo parte para uma conclusão, onde aponta para frentes que devem ser atacadas, pois são através da ressignificação e entendimento delas que virão as mudanças, trata-se da educação e da cultura. E antes de mais nada, para pensar mudanças na educação e na cultura é preciso entender e discutir as questões de raça, gênero e classe, uma vez que esses são campos de formação social e político, tanto o ato de ensinar como uma produção artística, por exemplo, apresentam em seus conteúdos algum tipo de denúncia ou exaltação a situações históricas que podem em algum momento ter sido negligenciada, portanto abordar essas questões tornam-se pauta essencial para o desenvolvimento de trabalhos que buscam comtemplar a narrativa da diversidade.
Desta forma, quando se fala em cultura e educação pode-se pensar em um processo de constituição de sentidos, um processo que possibilita acesso a determinado tipo de informação, que talvez algumas pessoas não recebam no seu cotidiano, são propostas simbólicas que os colocam a pensar a partir das informações que recebem, podendo elaborar seu entendimento sobre o que está vendo ou ouvindo, isso nada mais é que um processo de mediação para a produção de conhecimento.
Sabendo disso o coletivo do grupo de estudos aponta como de extrema importância contestar algumas formas de mediação de conhecimento que foram constituídas – em uma sociedade que tem seus valores baseados em uma moral de homens europeus, brancos, cristãos, héteros e cis, todos os corpos que fogem dessa regra tendem a ter suas histórias subjugadas e desvalorizadas. Sendo assim, dentro dessa lógica durante muito tempo a educação e a cultura foram um espaço de propagação e valorização de um único povo, promovendo o mito da história universal e única da humanidade, e agora, nós como trabalhadores da educação e da cultura temos a oportunidade de usar da nossa ferramenta de trabalho para mudar isso.
Portanto reconhecendo a posição de privilégio em que estamos, devemos pensar o porquê de não estar abordando esses temas e propondo esse debate mais a fundo em nossos trabalhos, se queremos uma real mudança, temos como obrigação propor possibilidades que construam e valorizem outras narrativas, é preciso descolonizar nossa educação e nossa cultura, pois elas têm como base a cultura branca eurocêntrica.
O processo se inicia por um reconhecimento das estruturas de opressão e como os ditos normais têm se beneficiado, mesmo que inconscientemente delas. Feito isso, não basta só reconhecimento é preciso ação, portanto é perder o medo de se reconhecer, racistas, sexista e classista, ou seja, um humanista ocidental e sentir vergonha, pois o medo paralisa, mas a vergonha mobiliza a fazer alguma coisa para não mais passar por isso.