A Velha Companhia é um dos coletivos teatrais de São Paulo que vem apresentando um dos trabalhos mais consistentes em termos de proposição dramatúrgica, desenho da cena e acabamento final do espetáculo. Montagens como “Cais ou Da Indiferença das Embarcações” e “Casa Submersa” alcançaram prêmios, sucesso de público e crítica.
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Criada em 2003 por Alejandra Sampaio, Kiko Marques e Virgínia Buckowski, o grupo acaba de entrar em cartaz no Sesc Pompeia com seu novo espetáculo “Banco dos Sonhos”, celebrando suas duas décadas de existência. O diretor e dramaturgo do espetáculo, Kiko Marques, concedeu uma entrevista exclusiva para a SP Escola de Teatro.
Confira a entrevista na íntegra:
A sinopse do espetáculo fala sobre “o universo onírico de uma transtornada atriz à beira da morte, em uma rua insone da cidade de São Paulo, a partir da visita de uma inesperada credora”. Como foi a escrita do texto? A dramaturgia original sofreu muitas intervenções durante os ensaios?
Kiko Marques – O texto foi escrito ao longo de alguns anos, em idas e paradas, ao sabor do movimento criativo e das demandas da companhia. Seu disparador ocorreu há mais ou menos 14 anos, quando, às vésperas da morte anunciada de uma pessoa próxima, tive um sonho que beirou o delírio. Desse sonho nasceu um conto, que morou na gaveta por muitos anos. Em 2017 retomamos o tema em conjunto e o burilamos através de improvisações e ideias, mas o abandonamos novamente por conta de agenda. Em 2020 abrimos uma janela a partir do tema, que culminou na performance online apresentada ao final do processo de pesquisa da companhia, realizada pelo 35º Programa de Fomento ao Teatro, “O Que Pode a Palavra”, com o título “Descarty”. E agora, em 2023, o retomamos em definitivo. Nessa fase de montagem, o texto sofreu várias alterações por conta das discussões a partir de questões sociais, políticas e estéticas relativas ao universo do espetáculo.
No último espetáculo, “Casa Submersa”, havia muitos dispositivos (que a grosso modo vamos chamar de) aristotélicos, sobretudo situações de reconhecimento e reviravolta, expedientes consagrados mas que aparecem cada vez menos no teatro contemporâneo – principalmente para coletivos experimentais e de pesquisa, como é o caso da Velha Companha. Como funciona a estrutura dramática de “Banco dos Sonhos”?
A estrutura dramática do espetáculo segue sim o caminho da busca de sentido, mas se choca com sua impossibilidade dentro da realidade onírica onde a peça acontece. A base continua sendo uma história, um fato, um mito disparador. Um dos pontos de partida, interesse e estudo para esse nosso trabalho foi o “Vestido de Noiva”. Queríamos, de algum modo, revisitar o texto do Nelson, marco do teatro, que agora em 2023 completa 80 anos. “O Banco dos Sonhos” pode ser lido como uma espécie de olhar de hoje para a estrutura do “Vestido”, com seu disparador, seus planos narrativos, que são tratados por nós de forma desierarquizada. Em nossa peça não há diferença de valor entre esses planos. Sonho, realidade, delírio e memória se misturam, cabendo a quem vê a escolha de juntá-los, valorá-los ou apenas seguir, livres da consciência objetiva.
Sobre a pesquisa da companhia em relação aos expedientes usados na contemporaneidade, penso que os dispositivos ditos aristotélicos que você cita são usados por nós desde a criação da companhia, em seu primeiro espetáculo, “Brinquedos Quebrados”, e continuaram sendo utilizados em toda a trajetória dela, mas de forma conectada, a partir de um sistema libertário e contemporâneo de escolha, pensando no espectador de aqui, do mundo de agora, seu dinamismo, sua hiperconectividade, sua fragmentação, mas também sua necessidade de conexão com o outro, sua experiência da alteridade.
Seguimos trabalhando com histórias, realidades ao mesmo tempo internas e externas que são nossas, mas que ultrapassam nossa individualidade. Talvez seja esse o ponto de menor contato com as pesquisas e caminhos que a maioria dos grupos de pesquisa segue. Estamos atentos a essa questão e investigando novos caminhos e linguagens. Nosso último Fomento, que citei anteriormente, foi todo criado sobre essa perspectiva, com extensas discussões, trabalho e uma abertura final onde apresentamos algumas performances no formato online, e que vieram a dar em “Banco dos Sonhos”. Estamos trilhando caminho novos, mas o quão novos e conectados eles têm sido e virão a ser, é uma pergunta que não temos como responder.
Como foi o processo de desenvolvimento da montagem? Vocês tiveram alguma pesquisa temática (política, social, alegórica) ou formal que motivou a criação dessa nova peça?
Em nossas criações trabalhamos com pesquisa e provocação. A obra foi desenvolvida em momentos históricos distintos, até seu último tratamento. Entre as temáticas que tecem a dramaturgia, nos aprofundamos sobre gentrificação, a especulação do mercado imobiliário; o apagamento de territórios culturais e da viabilidade de convívio da população nas áreas de exploração, com longos percursos entre suas casas e seus trabalhos; a precarização do trabalho, com os modelos de entregadores, motoristas, trabalhadores informais, que carecem inclusive de estrutura de saneamento básico para higiene e mínimo bem-estar; conceito de família e pertencimento, numa imersão sobre os preconceitos e desemparo que resulta do modelo perpetuado; sonhos psíquicos e sociais, impostos pelo viés do ter para existir; a mercantilização da vida no seu sentido mais feroz, de desconstrução do indivíduo e suas potencialidades.
O teatro, a arte, não como lugar onde se “vê”, mas como espaço para o debate, com capacidade informal de constituir pensamento crítico e instaurar pertencimento. Nessa jornada realizamos entrevistas, experiências em campo, bem como a participação das profissionais Mariana Laham (analista junguiana) e Maria Fernanda Vomero (provocadora cênica).
Por Marcio Aquiles.