* por Mauricio Paroni de Castro, especial para o portal da SP Escola de Teatro
Kantor nasceu em 6 de abril de 1915, na cidadezinha polonesa de Wielopole, perto de Cracóvia, filho de mãe católica e pai judeu. Este fugira com outra mulher durante a Primeira Guerra Mundial. Tadeusz foi criado pela mãe e pelo tio, um padre. Naquela região, crentes das duas religiões conviviam perfeitamente antes que a guerra se impusesse como método de definição de limites etnoculturais. A coisa piorou ainda mais na Segunda Guerra Mundial. Durante a invasão nazista, cristãos que denunciassem judeus “herdavam” seus bens. Consequências desse horror medieval persistem até hoje na forma de limites culturais falaciosamente associados a etnias.
O contato com Tadeusz Kantor fascinou-me por carregar em si, desde o início, o aprofundamento de todas as suas características criativas para além de sua respectiva cultura teatral. Poucos artistas de minha geração puderam viver esse aspecto fundamental do teatro ocidental, ao estarmos dele isolados por conta de uma ditadura militar que durou mais de uma geração.
A vitória de Kantor sobre seu destino explica muito de seu gênio. Ele poderia ter feito simples espetáculos que representassem a dura realidade da conquista ou perda de identidade cultural pela violência das guerras. Mas a inspiração de sua poética transformou esse drama numa metáfora: o limite entre a arte e a realidade. Mais: na porta de comunicação entre aquelas duas dimensões. Estamos longe da narração realista sobre o limite entre católicos e judeus, entre poloneses e alemães, e assim por diante, num desonesto maniqueísmo comum na arte contemporânea. A Polônia tem uma cultura teatral tão rica e variada que outra metáfora dessa desesperada busca de identidade também se desenhou contemporaneamente, por caminhos e resultados diametralmente opostos. Ficou conhecida uns quinze anos antes de Kantor ter sido alçado à fama no Ocidente: o Teatr Laboratorium (Teatro Laboratório) de Wroclaw guiado por Jerzy Grotowski (1933-1999).
“Passei a viver a realidade daquele mundo de confins entre realidade e sonho. Aos 24 anos de idade, nunca mais seria o mesmo, nem o mesmo aluno, muito menos a mesma pessoa”, diz Paroni.
Aluno da Academia de Cracóvia em 1935, Kantor foi fortemente influenciado pela teoria da supermarionete do britânico Gordon Craig (1872-1966), além da Bauhaus (*). A Segunda Guerra encontra-o fabricante de bonecos, além de pintor que funda uma companhia de teatro clandestino – não teve um dia que não o tenha visto mencionar a imprescindibilidade de ser clandestino e contrabandista para produzir arte. Representava os seus espetáculos literalmente embaixo dos escombros de sua Polônia bombardeada; todos arriscavam a vida de verdade. Declarava que as suas criações construíam-se em meio à dor, à morte e à ausência de qualquer segurança, devido um passado pessoal destruído. Isso, dizia ele, já bastava para diferenciá-lo de Grotowski. Ai de quem pronunciasse esse nome… Vi-o expulsar, aos berros e insultos alusivos às fezes, certos jornalistas ingênuos que lhe faziam perguntas sobre o guru do Teatro Laboratório “enquanto outro famoso polonês” (sic).
Ao fim da Guerra, funda o Cricot 2 (a partir da expressão polonesa “O circo chegou!”). Em cerca de quinze anos, montou seis espetáculos, cinco a partir de textos de Stanislaw Witkiewicz (**). Ficou relativamente reconhecido como o artista plástico polonês que explorava as possibilidades da emballage e do happening. Em 1975, essas formas invadiram-lhe o palco definitivamente. Com “A classe morta”, a fama se consolida. Não há enredo preciso, somente a passagem da evocação artística para a corporeidade do palco e vice-versa. Segue-se “Wielopole, Wielopole”, uma espécie de máquina cênica da memória e da obsessão; “Morram os artistas”, a difícil conquista da identidade neste mundo impossibilitado de definição de linhas de limite, entre ser criança e ser moribundo; em “A máquina do amor e da morte”, vive-se o mecanismo da luta da paixão versus tempo. “Aqui não volto nunca mais!” estabelece o diálogo e a despedida entre si, suas criações e suas personagens recorrentes. Morre na manhã do dia do ensaio geral de “Hoje é dia do meu aniversário”. A última cena ficou formalizada assim, inacabada.
Assisti a estes espetáculos seja com ele em cena, em sua mesinha, seja depois de sua morte, rigorosamente iguais, com um ator que fazia o seu “papel”. Pareciam – ou eram? – espetáculos completamente diferentes. Daquela mesa formalizava ordens, punições, insultos, exclamações, erros, elogios: uma jaculatória despudorada de invenções cênicas que, congelada com a sua morte, perdeu grande parte de seu sentido. Nas últimas criações, as personagens saiam assombradas ou de uma moldura ou de imensas paradas fantasmagóricas de seres desgraçados para invadir o palco através de uma porta aberta para a convivência no “pobre quartinho do imaginário do artista”, dizia.
***
Tive, por alguns dias, o imenso privilégio de viver dentro daquele quartinho, sentado ali mesmo, em sua mesa de trabalho, posta no palco da Escola de Arte Dramática de Milão, onde ele ministrou as famosas lições milanesas. Era julho de 1985. Eu cursava o primeiro ano da Escola. Kantor trabalhava com os alunos do terceiro ano, no tradicional espetáculo de formatura. Era o grande diretor convidado. Os atores queixavam-se de serem dirigidos por um “exótico velho professor de mímica polonesa”. Essa era a opinião inicial da maioria daqueles formandos privilegiados e ignorantes. Fazia um calor de rachar, que ele não suportava. Trabalhava, portanto, das dez ao meio-dia e das quatro às seis. Parava para o almoço e ia estudar em seu quarto de hotel, perto da Escola. Novato, fui expressamente proibido de frequentar aqueles ensaios. Jornalistas também eram barrados.
Escondi-me na cabine de luz, durante a pausa. Dali poderia espiar tudo.
Kantor exigia que os técnicos e figurinistas trabalhassem nas salas contíguas, senão na mesma sala. Tudo acontecia ao mesmo tempo, era um enorme atelier de artesanato. Havia um compositor de plantão. Havia também um teclado eletrônico de um sintetizador na sala; trabalhava-se com o compositor durante a construção do espetáculo “Um casamento – visão surrealista e visão construtivista”.
Por viver numa Polônia ainda isolada pela cortina de ferro – mesmo sendo cada vez mais recebido no Ocidente capitalista – Kantor tinha embaraço em revelar o quão impressionado ficava ao ver um teclado que produzia sons de sino, para ele grande realização técnica de sonhos estéticos surrealistas. Namorava apaixonada e secretamente o teclado, sem ousar mexer naquela coisa diante de todos.
Durante a segunda pausa, no silêncio e calor de meu esconderijo, fiquei sem respirar ao ouvir que ele, em pessoa, estava escondido atrás da rotunda, até assegurar-se que o teatro estava vazio. Finalmente poderia explorar e experimentar o estranho “piano-campanário”; beliscava o teclado e nada, nenhum barulho. Notou que eu o espiava, boquiaberto; os dois se assustaram, temi o pior, a expulsão do curso, sei lá, por ter ofendido aquele mito vivo e grande amigo do diretor da escola, Renato Palazzi, principal crítico do Corriere della Sera.
Na certa seria expulso daquele santuário, daquele sonho que havia alcançado com tanto sacríficio. Nada disso: apenas me chamou e me advertiu em francês, carinhosamente, que eu “não o havia visto ali”, e que eu “estava convidado aos ensaios; bastava reapresentar-me ali, às quatro, vindo de fora”. Contei que havia sido proibido de entrar na sala pelo diretor da escola, que a plateia deveria estar rigorosamente vazia. Ele disse que aquele vazio era necessário à sua tranquilidade; não haveria de ser um problema, ele mesmo resolveria. Às quatro da tarde, apareci e fui instado a sentar naquela mesa posta no canto do palco, com café, cigarros Marlboro e outras prebendas muito ambicionadas no leste europeu… Depois de tudo, eu também era um diferente, um sul-americano, que ele achava estranho que não fosse obcecado pelo entretenimento ou pela política diretamente ideológica no palco.
Passei a viver a realidade daquele mundo de confins entre realidade e sonho. Aos 24 anos de idade, nunca mais seria o mesmo, nem o mesmo aluno, muito menos a mesma pessoa. O meu projeto de vida e de arte havia mudado para sempre. Estava na Itália para aprender a ser um diretor de tipo clássico. Mas a angústia de estar ali, em cena, vivo, sem o escudo confortável do estado de morte daquelas personagens, sem um enredo literariamente organizado, personagens congeladas no abandono da pior inutilidade temporal, foi uma experiência totalizante. Nos minutos vividos naquela corda bamba revelou-se a emoção de um equilíbrio sobre o perigo que nunca mais abandonei. Tampouco caí na tentação de copiar a impressionante forma das suas criações inimitáveis. Eram constantes e severas as suas advertências a esse respeito. Kantor não perdoava diretores e artistas cultores de uma forma “espertinha”, boa para angariar subvenções governamentais em defesa da “arte”. Muito menos que o “homenageassem”, imitando-lhe a estética.
Viver aquilo me bastou para perseguir coisas incertas, no mesmo espírito daquele a quem passei a chamar, como os seus atores italianos – e havia muitos – chamavam-no: il nonno (o vovô).
Daquela mesa de onde partiam a regência e os gestos impositivos do “vovô”, daquela fronteira entre a realidade psíquica e factual, tenho visões recorrentes e diárias. Antes de dirigir ou escrever qualquer coisa, ainda ouço claramente o som da sua severa voz de polonês: “O espaço da vida é o espaço da arte; ambos confundem-se, compenetram-se e dividem um destino comum; a ‘quarta parede’ não tem sentido porque a necessidade da obra teatral reside nela própria; o espetáculo acontece não para alguém, mas na presença de alguém; atores não podem fingir uma personagem ou representar um texto; o drama e a vida coincidem na criação de um espetáculo-obra de arte”.
***
Baseei um microdrama, “O mestre”, num episódio real presenciado durante a montagem de “A máquina do amor e da morte”. Foi publicado em 2011, no caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo (***). Transcrevo-o por ser muito eloquente da atmosfera que Kantor instaurava durante a criação de seus trabalhos.
“O mestre”
Tadeusz Kantor estava muito aborrecido. Nada funcionava naquela criação. Aos berros, expulsou da sala de ensaio todos os presentes. Queria solidão.
Pausa.
O esqueleto de cena não se mexia. Insultou-o longamente.
Pausa.
Diante da insolência, agrediu-o até que se reduzisse a um monte de ossos.
Silêncio.
(*) Staatliches Bauhaus, escola de arquitetura, arte e design da Alemanha de Weimar em 1919-1925, Dessau em 1925-1932 e Berlim em 1932-1933. O nome origina-se do termo Bauhütte – medieval dos pedreiros. Herdeiro da vanguarda anterior à Primeira Guerra Mundial, foi a principal referência estética modernista do design e das arquiteturas racionalista e funcionalista. Tudo foi interrompido com a ascensão do nazismo, mas a experiência educacional e a relação entre tecnologia e cultura preconizadas pela Escola influenciam as artes até hoje. Kantor teve contatos pessoais e intelectuais com alguns daqueles artistas ligados à Bauhaus. Falava neles de forma direta, pessoal e evitava a idolatria ou o intelectualismo: Walter Gropius, Mies Van Der Rohe, Wassily Kandinsky, Paul Klee, László Moholy-Nagy, Oskar Schlemmer.
(**) Stanisław Witkiewicz (1885-1939), dramaturgo, filósofo, escritor e pintor, estudou Belas Artes em Cracóvia. Participou da Primeira Guerra Mundial como oficial do exército russo (a Polônia fazia parte do czarista), aderiu à revolução bolchevique e tornou-se comissário político. Nos anos 1920, foi diretor de teatro, dedicou-se à pintura e deu aulas de literatura e filosofia. Suicidou-se em 1939, após a invasão do exército alemão e do ataque stalinista à Polônia.
(***) Todos os microdramas, dedicados a Sérgio Sant’Anna, podem ser acessados aqui.
Dada a repercussão positiva artigos em que relato experiências pessoais de palco, disponibilizo informalmente as principais influências que nortearam a construção e composição da poética que pratiquei na Itália, na Escócia, em Portugal e no Brasil. Serão artigos designados com a palavra “Influência” e foram publicados no livro “Aqui ninguém é inocente”, de minha autoria em conjunto com Ziza Brisola, pela Alameda Editorial em 2006, que gentilmente libera a publicação aqui. O livro fez parte do projeto Voltaire de Souza, o intelectual periférico, patrocinado pelo Fomento em 2005.
Assumo o risco de parecer pedante, mas parece-me coisa útil descrever experiências vividas com algumas das mais lúcidas mentes do teatro do final do século 20, no fim do período em que a ditadura militar brasileira depredou financeira e intelectualmente o nosso teatro. Principalmente devido a essa penosa situação, muitas personalidades citadas nunca – ou raramente – vieram ao Brasil. O contato de nossa cultura teatral com elas dependeu mais de artistas exilados ou radicados no exterior ou se deu exclusivamente através de livros e estudos universitários. Os verdadeiros dependentes da necessidade de troca artesanal, os atores, foram condenados ao isolamento. O inverso também é verdadeiro e o que se conhece do teatro brasileiro num universo dominado pelo eurocentrismo não faz senão que agravar essa triste realidade.