POR PAULO FRANCO, especial para a SP Escola de Teatro
Encenada de 15 a 17 de novembro, na programação de Autopeças, com curadoria de Marici Salomão, dentro do festival Satyrianas, “Estado de Emergência” destaca-se pela qualidade do trabalho. Essa relevância se constata por razões diversas — algumas elucidadas aqui, outras, somente a “experiência desse experimento” pode proporcionar.
Dentro de um claustrofóbico carro branco, tapado em suas janelas com anúncios alarmistas, porém críveis — como “Exterminado hoje na Amazônia, o último povo indígena” e “Conselho de Direitos Humanos distribui uniformes azuis nas escolas, onde meninos jamais virarão (sic) menininhas” — desenvolve-se uma performance com atuações irrepreensíveis de duas atrizes, Arinha Rocha e Sandra Vilchez, sob a direção de Carolina Fabri, em que o comportamento e a fala são gerados por meio do jogo cênico e do ritual.
No retrovisor do carro estão pendurados uma guia de candomblé, um amuleto budista e um crucifixo. E nada disso parece salvar a ansiedade desse casal lésbico da necessidade de conseguir sair dirigindo o carro. Dar a partida é difícil. E após a partida? Afinal, “ontem assassinaram uma garota dentro do carro”. O carro não é mais seguro? Estar desprotegido “lá fora” pode ser mais cômodo? Vamos colocar música… Isso aliviará a dor e ansiedade? O meu carro é mais novo que o seu. Isso nos protegerá mais ou nos colocará mais vulneráveis? As janelas que me sufocam me fazem pedir socorro ou me acalmam no comparativo de que poderia ser pior comigo? São indagações implícitas ou não, mas sempre sem respostas.
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Um espetáculo com um texto enxuto, claro e objetivo; na dramaturgia de Afonso Jr. e Sandra Vilchez, cada palavra – dita ou não dita – tem sua importância. Uma sonoplastia vinda do exterior em forma de caminhantes falantes e que se colocam alheios ao que está se passando dentro do carro branco. Uma situação banal, mas também um ritual de locomoção. Ligar um carro e dirigir de um determinado ponto a outro ponto preestabelecido. Simples assim. Simples?
Um texto que dentro de nossa perspectiva histórica contemporânea torna-se urgente. Uma estética que se alinha à dramaturgia, nos colocando em um espaço de apreensão, de questionamento e principalmente de empatia ao casal e à situação. Ao proposto pelo grupo nesse trabalho, tudo fica além: é um espetáculo que cresce dentro de você quando se encerra.
Talvez para se afirmar como um alívio no primeiro momento, e, posteriormente, nos arrebanhar como agentes atuantes de discussão e transformação. E nesse contexto político social — e em estado de emergência — é um sopro de frescor com uma estética renovada, e é a constatação de que a experiência – individual -, pode tornar-se um experimento — coletivo –, quer você decida ou não ser parte. Mais que tudo isso, o espectador passa a saber de mais uma história contada onde a forma somente agregou ao conteúdo. A estética e o local não poderiam ser outros.
As sensações que tive com esse trabalho, e as mantenho, me remetem ao Teatro Invisível, de Augusto Boal: “Eu espero parar de jogar” significa o mesmo que “Eu parei de jogar”?
Paulo Franco é participante da Oficina Olhares – uma poética da crítica, ministrada por amilton de azevedo, como atividade de extensão cultural da SP Escola de Teatro. Os participantes foram convidados a escrever críticas de espetáculos das mostras AutoPeças e Ouvi Contar, dentro da programação das Satyrianas 2019.