POR ISABELLA DE ANDRADE, especial para SP Escola de Teatro
O “Experimento Dissenso”, proposto por Lara Duarte e Matheus Rodrigues e vivenciado por eles e mais três ou quatro espectadores, por sessão, faz parte do projeto AutoPeças, com curadoria de Marici Salomão, dentro da programação do festival Satyrianas. A ideia é entregar outros olhares ao caos urbano e ao abismo que separa tantas histórias que se desenrolam nos automóveis que circulam pelo trânsito de São Paulo. Por alguns instantes, participamos como observador atento de uma dessas narrativas e entramos no carro também como integrantes do grupo.
A chuva tomou conta da capital Paulista, na última quinta-feira (14), e deu outra cara para a parte inicial do fragmento cênico. Acompanhei, ainda na calçada, a limpeza do carro que se transformaria em palco. Debaixo dos últimos pingos de chuva, os dois intérpretes trataram de lavar um pouco do espaço que nos receberia. A bandeira do Brasil, símbolo gasto e emblemático nos tempos atuais, serviu como pano de chão. O objeto bem escolhido logo deu o tom da cena que viria a seguir.
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O símbolo verde e amarelo tornou-se ainda mais icônico ao se transformar em divisor de águas, caráter e posicionamento político e social. A bandeira se firma como um grito de escolha. Frente ao que ele representa atualmente, o objeto te suscita orgulho ou repulsa? Essa questão logo tomaria conta da discussão iniciada no carro, transformando a polaridade nacional em tema central de uma discussão aparentemente cotidiana e corriqueira entre um casal. Entre imagens simbólicas e ações concretas, a cena estava posta.
Fomos convidados a entrar no carro, eu e mais três espectadores. Nos acomodamos na parte de trás do carro; na frente, estavam Lara (também diretora e dramaturga da peça) e Matheus. O espaço pequeno tornou a apresentação ainda mais imersiva, e pude acompanhar bem de perto o jogo de cena rápido, o talento e o carisma dos dois atores. Logo me senti parte do grupo aglomerado no carro.
No início, a música alta, a cerveja passada de mão em mão e as luzes de boate criaram um clima de pré-balada. Senti que estávamos prontos e a caminho de alguma festa da capital. A proposta cênica se alternava de maneira interessante entre realidade, autoficção e ficção. Lara e Matheus se apresentaram com seus nomes, profissões, documentos e fragmentos de histórias reais. Conhecemos um pouco dos intérpretes através da voz e do corpo de seus companheiros de cena. Lara se mostrou Matheus, e Matheus se mostrou Lara.
No banco da frente, um ator negro (que traz na certidão de nascimento a definição “recém-nascido branco”), que se alterna em diferentes trabalhos, entre eles, motorista de Uber. Um retrato fiel da profissão. Quantas vidas um ator pode criar entre o palco e a realidade? Além dele, uma atriz branca (também considerada uma recém-nascida branca) e baiana, que dizem parecer ter cara de rica. “Então que cara tem as pessoas que parecem ser pobres?”.
O carisma e a facilidade para capturar o olhar dos espectadores tornam esse início de cena ainda mais imersivo e verdadeiro. No carro, eu me esqueço da barreira entre palco e plateia. O papo é bom e eu poderia escutar um pouco mais das histórias cotidianas dos atores por mais algumas horas. Quantos passageiros o Matheus realmente beijou no carro? Quantos corpos pelados o banco que eu sento já recebeu?
Lara namora outra mulher, Matheus namora outro homem. Por alguns instantes, os atores nos propõem: “vamos fingir ser um casal heterossexual”. O carro permanece estacionado e, naquele tempo que precede a saída, logo se inicia a discussão. Ela é de direita, depositou seu voto e esperança no agressivo e armamentista presidente Bolsonaro. Ele, de esquerda, mostra-se indignado e bastante alterado pelo voto da mulher. A cena parece tão cotidiana no ano caótico de pós-eleição que poderia acontecer em qualquer esquina.
O tom da peça muda. Se no início fomos tomados pela risada e pelo clima descontraído das histórias contadas pelos intérpretes, agora a tensão toma conta do ambiente. A discussão do casal não apresenta menos realidade que as narrativas anteriores. Já acompanhamos várias delas entre mesas de bar, almoços de família e brigas online. A aparente falta de sensatez da mulher que vota em um candidato de extrema direita desperta uma descrença tão grande no marido de esquerda que o diálogo torna-se impossível. Entre gritos e acenos frenéticos, nenhum participante é capaz de escutar.
A dificuldade de diálogo entre as duas extremidades tornou-se drama, caos e piada pronta em centenas de carros que circulam pela cidade. Como argumentar? O marido, que já não aguenta mais a insensatez dos argumentos da esposa, finalmente levanta, bate violentamente a porta do carro e vai embora. Eu, no banco de trás, me torno Julinha, a filha silenciosa e catatônica do casal. Tenho oito anos.
No lugar do motorista, a agora chorosa e indignada mãe me pergunta com raiva: “Não vai dizer nada?” Fico confusa. Sendo Julinha ou espectadora, eu realmente não saberia o que dizer. “Não vai me defender?”. Tenho vontade de gritar, pedir que ela preste atenção nas bobagens que diz e trate de escolher um candidato que preste para votar. Ao mesmo tempo, tenho vontade de ir atrás do pai, quero gritar com ele também, pedir que não bata a porta do carro na cara de minha mãe e que espere ela terminar de falar. Como dialogar entre os extremos? A cena criada me desperta muito mais realidade do que ficção.
Tenho pouco tempo para me compadecer de minha mãe sozinha no carro. Logo ela passa a gritar comigo também. Eu deveria tomar uma posição, defendê-la, criar vergonha por não tomar nenhuma atitude no auge de meus oito anos. “Você poderia, pelo menos, fazer a aula de tiro que eu te pedi. É preciso estar preparada, todo mundo vai estar armado!”. No ápice de sua crescente, a esposa também desce e bate a porta do carro. Tira uma arma do porta-malas e corre pela calçada daquele pedaço de centro de São Paulo como um bicho à procura de caça.
A cena é potente, imersiva, bem-escrita e tem força na interpretação. Gostaria de ter acompanhado por mais tempo, já que eu, enquanto espectadora parte da sociedade levantada na montagem, ainda busco por soluções.
Eu continuo no carro, em silêncio. Como dialogar entre os extremos?
Isabella de Andrade é participante da Oficina Olhares — Uma Poética da Crítica, ministrada por amilton de azevedo, como atividade de extensão cultural da SP Escola de Teatro. Os participantes foram convidados a escrever críticas de espetáculos das mostras AutoPeças e Ouvi Contar, dentro da programação das Satyrianas 2019.