por Patricia Nicolini*, participante da oficina Olhares, especial para SP Escola de Teatro
Nos jogos de RPG, existe um conceito chamado “Sistema de Alinhamento”, ou “Tendência”: No jogo, a moral e as atitudes pessoais gerais de um personagem ou criatura são representadas por seu alinhamento. São nove tendências possíveis, decorrentes do posicionamento da personalidade diante de duas dualidades, opostas, somadas ao neutro, resultando em 9 combinações possíveis: good, evil, neutral; lawful, chaotic, neutral. Lawful é o termo usado para a personagem ou criatura que segue algum código de conduta, ao passo que chaotic é a tendência a tomar decisões imprevisíveis. Good e evil, bom e mau, dispensam apresentações; e neutro é o que chama a atenção, porque não se encaixa em nenhuma das dualidades. Dessa forma, lawful neutral seria uma personagem que segue um código de conduta específico, escolhido por critérios próprios, e a neutralidade se dá no sentido de que é absolutamente irrelevante se o código escolhido serve para fazer o bem ou o mal, ele é seguido por si só. E é exatamente essa a sensação passada pela peça “Oración” quando se chega ao final dela: lawful neutral.
A obra começa já buscando uma reação do espectador: é dado, desde a sinopse, que um casal mata seu filho pelo puro prazer que o momento proporciona, e a peça traz em seu início uma criança sob a luz, de modo que não se pode ver mais nada na cena além daquele bebê que chora pela própria morte – que virá nos instantes a seguir. A cena se abre, iluminando-se mais um pouco, e a imagem que se forma é a de um presépio, primeiro de muitos elementos bíblicos que compõem a peça.
Subitamente, o casal se dá conta de que o prazer de matar é breve demais para compensar o feito, e então procuram maximizar a busca pelo prazer, atingindo a compreensão do ápice que se pode obter em uma existência humana, lato sensu: viver no paraíso. Buscando viver no paraíso, passam a analisar o caminho das pedras para encontrar o pote de ouro: a bíblia. Com a bíblia em mãos, lançam seus olhares sobre diversas passagens, com a interpretação de pessoas que não têm em mente nem o valor do “bem” trazido pelo cristianismo, finalidade máxima da própria bíblia, nem o valor do “mau”, representado no cristianismo pela figura de Satanás. São pessoas que analisam a bíblia por si mesma, pelo simples objetivo de segui-la, sem nenhum arcabouço moral: lawful neutral.
Durante intensos trinta minutos, “Oración” coloca para pensar, propositalmente ou não: e se o maior código de conduta do ocidente fosse comentado por quem não tem o menor compromisso com os valores cristãos? E a resposta bate com ainda maior impacto: e se já estiver acontecendo exatamente isso, por muitas personagens da vida real autoproclamadas emissárias dos ditos valores cristãos? A semelhança com a realidade assusta mais do que dois assassinos de crianças em cena.
* Patricia Nicolini é bacharela em Direito (USP) e cursa o quarto semestre da graduação em Letras (USP), com habilitação em português e italiano, além de ter realizado curso de extensão em revisão na UFRRJ. Trabalhou cinco anos como advogada e hoje estagia como revisora de texto na Agência USP de Inovação.