por Clara Prado*, participante da oficina Olhares, especial para SP Escola de Teatro
sentada à minha frente, uma mulher. apenas uma mesa com algumas velas nos separam. atrás dela, a sala escura, vazia. ela começa a falar e, apesar de sermos só nós duas, não é comigo. nós não falamos a mesma língua.
em “Revlon 45”, de Fernanda D’Umbra, mesmo quando as palavras estão certas, parecem erradas. ao colocar em cena o texto corrido do monólogo em forma de anotações da personagem, a exatidão do que deve ser dito contrasta com a forma de dizer, o sotaque deslocado de uma menina órfã, de pais, de língua e de país. mas, mesmo que o discurso fosse completamente inteligível, a dimensão traumática do conteúdo nunca é apreendida por inteiro.
a violência do desaparecimento dos pais, da provável tortura, do não saber, deixa a menina sem palavras, sem mecanismos para lidar com o desterramento absoluto que sofreu. assim, a escolha pelo sotaque forçado enquanto marca, para sempre presente neste corpo, dos feitos da ditadura militar, assinala a imposibilidade de esquecimento diante do absurdo.
a atuação de Fernanda D’Umbra vai da aparente indiferença e tranquilidade a um desespero latente mas fundamental da personagem, que não emerge. o jogo entre o dito e o não dito, construído na fala, no entanto, não se sustenta no texto, que tenta entregar tudo. na atuação e na cenografia, os elementos todos apontam para algo escondido nas entrelinhas: a impossibilidade de lidar com a integridade do trauma, ou seja, de constantemente encarnar a dimensão indizível da violência. a dramaturgia, no entanto, é completamente despida de mistérios ou surpresas e parece uma tentativa desesperada de ultrapassar este limite inerente ao discurso, tornando-a previsível.
o que fica é, mais uma vez, um abismo entre o dito e o impossível de dizer.
* Clara Prado está cursando o primeiro ano de graduação em Letras na FFLCH-USP e tem um interesse especial por poesia, crítica e teatro. participou do Curso Livre de Preparação de Escritores (CLIPE Jovem) da Casa das Rosas no primeiro semestre de 2021, assim como de um grupo de estudos sobre dramaturgia promovido pelo Projeto Frestas. trabalhou voluntariamente como professora de português e redação em um cursinho voltado para jovens de escola pública, focado no preparo para provas de Ensino Médio. atualmente, faz um curso de teatro também do Projeto Frestas e é da equipe editorial de uma revista literária do curso de Letras que ainda está em formação.