por Gabriel Labaki, participante da oficina Olhares, especial para SP Escola de Teatro
Sapathos Digitais
Jorge Furtado – meu roteirista e diretor preferido – defendendo a importância de ter consigo um grupo de roteiristas diversificado, conta que durante o processo de escrita de um roteiro sobre racismo conversou com jovens pretos e periféricos sobre suas experiências.
Nessa situação, ao se deparar com algumas dessas histórias, concluiu que – e aqui cito sem lembrar exatamente das palavras usadas pelo diretor – nenhum grande roteirista conseguiria criar as situações absurdas a que a população preta no Brasil está submetida, por conta dessa cultura de racismo institucionalizado.
“Se o racismo acabasse hoje, eu iria para o shopping de chinelo”
A frase, dita por uma das atrizes da peça Sapathos Digitais, me lembrou prontamente do argumento de Furtado. Eu, sendo branco, nunca reparei com que tipo de calçado frequentava os espaços e, não me chocaria, caso descobrisse que já usei chinelos em espaços que “não deveria”.
Digo isso em resposta ao primeiro momento da obra: assim que a peça começa, um integrante da Cia. Zzzlots aparece, em vídeo, contando que a peça virtual já foi uma peça presencial, que interrompeu sua temporada por conta do início da pandemia. Diz ele também que o que veríamos a seguir seria uma versão adaptada ao virtual, com imagens da montagem original e mais alguns vídeos que o elenco gravou em casa e conclui com a expectativa de que “nesse formato uma parte, apenas uma parte da potência da peça original se mantenha”.
Infelizmente eu não vi a peça original. Não tenho como compará-las, mas sinto que a escolha de trazer as narrativas do elenco, em seu formato mais honesto, foi uma escolha acertada da companhia, inclusive para vencer a distância que a câmera, naturalmente, nos impõe.
Entendo a frustração que o teatro virtual pode ser para os artistas: as imagens da peça original que aparecem no decorrer da apresentação, por exemplo, me parecem muito mais uma citação saudosa de um grupo de artistas que foi impedido de terminar a temporada do seu espetáculo, do que, propriamente, um recurso que agrega ao espetáculo em seu formato virtual. Felizmente, as escolhas estéticas na adaptação foram efetivas no objetivo de trazer para nós “uma parte da peça original”.
*Gabriel Labaki é ator e diretor, bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Desde 2015 é integrante do Coletivo Cronópio, atuando nas peças “Favor beber o leite, senão estraga” e “(instruções para compor uma peça) – Se for viver, leia antes”, ambas sob direção de Alice Nogueira. Em 2020 fundou a Cia. Procura-se Mariano, com o objetivo de aprofundar e desenvolver a pesquisa iniciada na peça “Misto-Quente e Outras Coisas Que Não Importam Tanto (Como Por Exemplo Política)” de 2018. Iniciou seus estudos como diretor cênico, ainda na Unesp, no projeto Fábrica de Óperas coordenado pelo maestro Abel Rocha, onde assinou a direção das óperas “Os Piratas de Penzance”, de Sir Arthur Sullivan, e “Rita”, de Gaetano Donizetti. Foi professor de teatro no Cursinho Popular Heleny Guariba, do Instituto de Artes da UNESP, entre 2016 e 2017.