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Oficina Olhares: “O que espanca e escorre de sertanejos, karatecas e restos de cachos cortados”, por Manfrin Manfrin

Publicado em: 07/12/2021 |

por Manfrin Manfrin*, participante da oficina Olhares, especial para SP Escola de Teatro

A peça “DESMACHO”, com autoria e atuação de Ju Lima, nos trouxe neste sábado a noite do Festival Satyrianas uma tríade, em sequência, de reflexões a respeito do construto e da performatividade da masculinidade contemporânea, sobre o que é ser homem e como essa relação simbólica vem sendo transformada no passar das gerações. Se tornou impossível não se identificar com Lima, em cena, vivenciando biograficamente muitas de suas lembranças. No meu caso, não com sua masculinidade – que muitas vezes é questionada por ele mesmo – mas sim pela não adequação na performance de gênero que exigiam dele. Sem dúvidas este é o conflito: a inadequação.

Creio que de diferentes formas todes nós em algum momento somos cobrados por nossos gêneros e devemos dar uma explicação à estrutura social de quão machos ou fêmeas somos. Em algum momento nos cobram “as cláusulas de performance de gênero” que assinamos no contrato social. Para Junior, sem dúvida, e também para nós, espectadores confidentes dessa história, o golpe não dado no adversário do torneio infantil de karatê foi a quebra do contrato com a masculinidade patriarcal de seu contrato social familiar. Em sua narração, transparece e escorre uma certa dor advinda de narrativas de violência familiar paterna.

Como ele diz, citando o psicanalista brasileiro Pedro Ambra, essa cobrança de certa forma é uma castração. Macho e fêmea são adjetivos que me levam a pensar nossos corpos de uma forma animalesca e pouco especista – isso já é a Manfrin pensando sobre Ambra. Nos ver como animais me faz perceber que a consciência e reflexão sobre si não é nada de verdade se não estiver atrelada a uma ação sobre o outro. Ou seja, o que nos torna nós mesmos não é a reflexão, mas a ação a partir dela, a ação consciente. E Junior narra através de três blocos de ação (que ele mesmo separa) e nos conta através de um discurso direto, sem rodeios mas com muita troca de olhar. Primeiro porque é impossível não olhar nos olhos do ator em cena: são brilhantes, vivos e cheios de vontade. Segundo que é impossível não olhar para ele porque ele simplesmente nos olha; esse convite me produz o desejo de olhar para ele também. E então ele pega e fala com a gente. Assim, bem nanorelação mesmo.

Vamos partir do princípio, íntimo e do familiar; a casa. Fui convidada a adentrar um espaço no bairro do bixiga batizado como Nanoteatro. Uma casa portuguesa típica daquela região com uma pequena entrada que abre um mundo escondido lá dentro. Uma fissura no tempo e no espaço. Sim, apesar de se denominar Nano, o que se tem “lá dentro” é extremamente macro, universal. Há um ambiente que se move ali. E tive o prazer de participar dessa viagem durante cerca de uma hora. É uma nave em viagem poética.
Por uma questão arquitetônica, fiquei parada em um local onde não tinha cobertura sobre minha cabeça. Estava sentindo a presença das estrelas, da noite. Foi sentindo a natureza que recebi o ator em cena. Junior Lima tem uma presença singular de quem pensa a dança, o corpo e a dança anatômica do seu corpo. Essa consciência corporal fica evidente desde seu sorriso até a sua recepção. O que não estava evidente e que passou a ficar foi a vivência dessa consciência. O porquê dele nunca parar de dançar; o porquê sua dança nunca para de ser consciente! Esse corpo karateca. Esse bailarino de Katas. Eu também já fiz karatê. Fiz shotokan. De forma similar ao criador da obra eu gostava dos katas. Mas no meu caso, eu adorava imaginar os adversários que eu estava atacando com golpes coreográficos e belíssimos, imaginava lutando com centenas de ninjas e lutadores de sumô. Fiz karatê dos 07 aos 12 anos e talvez por isso imaginei o Junior mais ou menos nessa idade; ele disse que era criança. No entanto, Junior diz que gostava dos Katas por entender tais movimentos como dança. E mesmo quando Junior está falando, na primeira parte da tríade, ele dança.

Ali, ele convida um violeiro. Tocando uma moda de viola, abrem com uma narrativa belíssima que não me atreverei a dizer. Uma rítmica rima que espanca sorrindo com uma realidade para mim – caipira do interior – familiar e distante. Porque mais do que uma história que eu possa transcrever, o que me fica é a vontade daquele violeiro. Daquele menino da porteira ou daquele velho do bar de que o final da história deveria e vai mudar. E que Margarida, Rosa ou Maria não deveriam morrer e que no chão de terra as flores com sangue de feminicídios, seja de quais naturezas forem, não precisam ser mais regadas. A sensibilidade desse ato pode e deve escorrer simbolicamente para todo o decorrer da evolução dramatúrgica da obra.

Com o passar da narrativa, Junior – ainda com medo de assumir que sua obra é uma obra – nos explica que vai começar a segunda parte e então insere um saco de pancadas no meio do palco. Muito sem jeito, começa a falar dando socos no saco de pancadas. Toda vez que Lima se sente desconfortável em cena, fala sobre isso. Talvez porque depois de abrir o jogo se sinta menos desconfortável, talvez só porque esteja sentindo mesmo e fala. Então fala… fala… e quando vimos a narrativa já está tão violenta, e as repetições do socos no saco de pancada já tornou tal ação orgânica e também próxima.

Não é mais o garoto que se esquiva da verdade para demonstrar falta de intimidade com a violência. Ele agora agride porque se lembra de ser agredido. Lembra e narra os socos de seu pai em em sua mãe dentro do box do banheiro onde sua avó o banhava. Essa cena parece representar uma violência ancestral e estrutural nessa família; no sentido da família brasileira. Praticamente três gerações ali reunidas, no cômodo mais íntimo, o banheiro. Talvez só consigamos contar essa cena com alguma possibilidade do olhar artístico porque do chuveiro escorria água. Água corrente sempre leva e traz as coisas. E prefiro que essa narrativa venha, mas também vá. Vá e suma com toda essa água. Escorra pelo ralo.

Sem dúvidas é esse o sentimento do ator, autor, performer e depoente. Ele deseja que tudo vá. Num gesto de humildade e coragem – além de certo “abramoviquismo” – abre o terceiro ato convidando as pessoas a cortarem o seu cabelo e conversarem sobre suas memórias de pais, de masculinos, de vidas e de gente. O que tenho a dizer sobre essa parte? Que seu cabelo ficou lindo. Que todos que cortaram seu cabelo entraram tão organicamente na cena que poderia jurar que era combinado. E que eu ficaria ali ouvindo aquelas pessoas até você ficar careca.

Você me lembrou de roça, de macho, de cabelo de karatê. Me lembro das rosas, dos rodeios, dos primos e do futebol. Me lembrou de que o Teatro está vivo, e que se não podemos mais fazer Teatro para cinco mil pessoas como na Grécia, fazemos para cinco aí no Nanoteatro.

*Manfrin Manfrin é mestra em Artes Cênicas pela USP na área de Teoria e Prática do Teatro. É dramaturga, performer, atriz, diretora, arteducadora e pedagoga de gênero. É formada em Artes Cênicas e Interpretação Teatral pela UnB e Direção Teatral pela UFBA. Defendeu este ano sua pesquisa de mestrado intitulada “Práxis Queer da cena: Percurso de corpos travestigêneres e trans não Binários nas artes cênicas contemporâneas brasileiras” sob orientação do estudioso de Teatro e Gênero Prof. Dr. Ferdinando Martins, professor da USP. É auto das obras autobiográfica “fRuTaS&tRaNs-GRESSÃO. Histórias para Tangerinas e Cavalas-Marinhos.”(2018); “COCO!” (2019); “FURA! ou um objeto de penetração!” (2020) e “Cartas Para(Ti)” (2021).




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