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Oficina Olhares: “É possível falar de masculinidade e feminilidade sem sermos binários?”, por Manfrin Manfrin

Publicado em: 06/12/2021 |

Por Manfrin Manfrin, participante da oficina Olhares, especial para SP Escola de Teatro

É possível falar de masculinidade e feminilidade sem sermos binários?

Na última noite de sábado da 22º edição do Festival Satyrianas, me atrevi a assistir algumas obras presencialmente. A primeira foi esta: “Expresso 632”. Após quase dois anos sem essa ação que eu amava e fazia com frequência, assistir a um espetáculo presencialmente não se tornou uma tarefa tão simples e inquestionável quanto antes. Estar reunida em uma sala de espetáculo com pessoas desconhecidas foi um tanto quanto alarmante para mim. E foi esse o estado que recebi a obra. Um estado de extrema atenção.

Obviamente, o festival seguiu as medidas de segurança e redução de público; e as pessoas presentes estavam 100% de máscaras. Mas estar ali presente, de frente aos atores, não tinha sido a primeira vez neste retorno, mas me fez ali, naquele momento, pensar muito sobre isso. E agradeço ao final por ter tido essa reflexão e em seguida assistido a obra “Expresso 632” com direção de Renata Xá, uma peça extremamente sensível, intensamente interpretada, rigorosamente dirigida, eximiamente ambientalizada, futilmente materializada e com muitas nuances de interpretação e dramaturgia que me fazem não desgrudar os olhos do movimento cênico.

Movimento sim, uma peça sem palavras ditas, mas com muita dramaturgia. E essa necessidade dramatúrgica não me fez desligar os olhos dos corpos moventes. Uma vontade imperiosa de capturar as trajetórias daquelas figuras. O que eles aqueles corpos querem me dizer? Será que serei capaz de decifrar? Será que sou capaz de ser platéia depois desses quase dois anos isolada?

Agora, explicarei um pouco os adjetivos que dei às diversas funções criadoras dessa obra. A primeira figura que me surge no olhar é a mulher de preto ou a esposa, Larissa da Matta; a recebo como uma figura menos conservadora e mais fluida. Tem em sua qualidade energética movimentos mais arredondados e sinuosos. No início, vemos ela tendo uma relação direta com o homem de preto. Observo este casal como um estereótipo do masculino e feminino. De início, pensei em fugir dessa lógica, mas como, sem dúvidas, a narrativa reforça essa reflexão, me permiti. Essa mulher me parece mais disponível, solta, leve e livre. Mas logo de cara percebi que essa liberdade no movimento é um placebo. Ela é o corpo mais violentado, e tal informação fica evidente através de um repetição coreográfica de um gesto de lançamentos de pernas e braços pro ar, sendo segurada pela figura masculina. Memorize esse gesto. Nele está todo o enredo!

A segunda figura que me salta os olhos é o tal homem de preto ou marido, Pedro Amaral, que dança com a mulher de preto e uma mala. Ele me parece a figura típica dos homens cisgêneros brancos latinoamericanos, onde o corpo está como centro do discurso e de sua seguridade. Sim, uma masculinidade latinoamericana, apesar de todos os corpos serem bem brancos e dito europeizados, a figura escolhida pelo homem de preto é quente e latina. Não é uma masculinidade europeia, que tem em sua violência um tom gentleman – que não alivia em nada a dor das vítimas, mas a mascara. Aqui nesta cena, o que podemos ver é o tipo brasileiro: se apoia no corpo, no falocentrismo invasor e na virilidade como símbolos do masculino, um masculino que em cena fica escancarado como frágil apesar de bruto.

Digo frágil pela repetição de movimentos: o ser masculino tem códigos específicos que, não sei se conscientemente ou não, o ator a todo momento recorre a eles, mesmo quando troca de parceira. Sim, o masculino não é igual no mundo inteiro. Neste momento entendo que o padrão também não é um modelo universal. Se a fala nessa obra é corporal, quanto mais corpos, mais fala. E nesse sentido o desespero pela fala se dá na ação de tirar a blusa; é um movimento extremamente simbólico que, utilizado inteligentemente, evidencia a falta de diversidade na resposta masculina para suas elaborações, o padrão e a norma.

A terceira figura que me chama atenção e rouba a cena é a mulher de branco, Bruna Sampel. Ela entra com um figurino mais de época e com um tom um pouco mais antiquado. Ela usa chapéu e tem uma movimentação inicial mais caricata e retilínea. Tem um certo tom canastrão, que com o decorrer da dramaturgia se torna barganha de jogo e ela vai minimizando-o até o momento catártico de abuso e transição da figura. A atriz  revela uma inteligência nos movimentos, pois mesmo sem falar há nela uma ansiedade de nos contar quem é a personagem e para que veio. Ela apenas existe. Incomodada. Existe. Fluida. Existe. Travada. Existe, e futuramente entendo que ela Re(existe).

É nela que está a força transfeminista, e digo trans, pois a uma perspectiva que vai além de um feminismo branco e europeu. A mulher que chega parecendo uma dama francesa, pouco a pouco é interpelada por esse masculino latinoamericano. Essa mulher sabe se defender, sabe se esquivar mas sem dúvidas também sabe sofrer e se render. Há opções coreográficas que evidenciam a força e a fraqueza da personagem, tornando essa dicotomia ainda mais simbólica na cena. Ela não é a guerreira que tudo enfrenta, ela não é a dama que de tudo se incube. Ela simplesmente é ela. Humana. Que, diferente da mulher de preto, não está em relação ao masculino. Até a chegada da penúltima figura.

A penúltima figura e última no elo central entra secundariamente na cena e é um homem de branco – ou o um homem branco. Figura amiga que vem manhosamente se arrastando de forma gentil e discreta. Chega tornando tudo mais avermelhado através da ação de colocar um certo filtro sobre a luz branca – confesso que a luz branca estava incomodando, pois era muito forte, estava bem na altura do meus olhos e essa ação do personagem me agradou tanto que me fez simpatizar com ele. Ele representa a figura típica do bom homem de esquerda, amigável e descontraído. Generoso e belo. Sim, as masculinidades com suas “diversidades”; ele conhece e reconhece seus defeitos e, quando quer, usa-os como estratégia de conquista. E esse personagem escancara tal perspectiva em sua coreografia, ou melhor, em sua qualidade energética. Ele, que é o mesmo que me salva os olhos botando um filtro vermelho, quando contrariado é o mesmo que retira tal proteção com violência e nos larga sofrendo em cena do lado da mesma figura que ele galanteou. Nesse momento, vemos gestos do outro casal sendo repetidos por este. Há uma binariedade nessa comparação. Me pergunto se é possível falar de homens e mulheres sem sermos binários. Será?

Gostaria muito de parabenizar a direção. Sem dúvidas a rigidez da criação de Renata Xá somada a sua sensibilidade fica evidente nas escolhas cênicas. Há um desejo tremendo de provocação do público. Uma trilha que caminha como um desenho de eletrocardiograma, que a cada batida do coração produz um declínio, um desenho, uma emoção. Me senti assim durante os cerca de 40 minutos da obra. Uma montanha russa em formato de cardiograma. E esse turbilhão de emoções fica evidente principalmente nas finalizações nas cenas, muitas vezes abruptas – mas convidativas para assistir o que vem a seguir. Sem declínios ou medo, Xá demonstra sua opinião sobre a binariedade dos gêneros e sem dúvidas faz uma forte crítica aos comportamentos e hábitos familiares generificadores. Há a crítica, há a liberdade e há a opinião.

Meu único incômodo está na cenografia, que em algum momento se tornou uma materialidade fútil. Observo sua ideia, e não sua função. Senti vontade de ver aqueles corpos livres pelo espaço, criando seu universo. O elenco é capaz de criar esse expresso ou esse terminal com muito mais potência do que canais estáticos. É uma obra sobre movimento e transformação e nesse sentido sinto falta de materialidades que são como as personagens. Clichês e obviedades em algum sentido, mas que se afetam no decorrer da dramaturgia, e está aí a beleza da reflexão. Não temos problemas em sermos binários e padronizados, desde que estejamos abertos ao afeto e a transformação se e quando elas forem necessárias.

Já no final, surge uma última figura masculina que me faz entender que o ciclo de certa forma se repetirá; o Expresso novamente passará. A diferença é que dessa vez a mulher de branco existe. E reexiste. Ela não aceita tranquilamente seu trauma: é um corpo em luta, que mesmo após o luto não deita para a masculinidade tóxica.

* Manfrin Manfrin é mestra em Artes Cênicas pela USP na área de Teoria e Prática do Teatro. É dramaturga, performer, atriz, diretora, arteducadora e pedagoga de gênero. É formada em Artes Cênicas e Interpretação Teatral pela UnB e Direção Teatral pela UFBA. Defendeu este ano sua pesquisa de mestrado intitulada “Práxis Queer da cena: Percurso de corpos travestigêneres e trans não Binários nas artes cênicas contemporâneas brasileiras” sob orientação do estudioso de Teatro e Gênero Prof. Dr. Ferdinando Martins, professor da USP. É auto das obras autobiográfica “fRuTaS&tRaNs-GRESSÃO. Histórias para Tangerinas e Cavalas-Marinhos.”(2018); “COCO!” (2019); “FURA! ou um objeto de penetração!” (2020) e “Cartas Para(Ti)” (2021).




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