Vencedor do prêmio Jabuti de 2021, o mais importante da literatura brasileira, e traduzido em dezesseis idiomas, o livro “O avesso da pele”, de Jeferson Tenório, é a mais recente vítima da onda distópica que varre o mundo e se instalou no Brasil.
Tudo começou quando viralizou nas redes sociais o vídeo de uma diretora de uma escola de Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul, acusando o livro de conter palavras de “baixo calão”, atentórias à moral e aos bons costumes.
Em tempos de conservadorismo extremado e para atender ao clamor moralista e furibundo vindo das redes sociais, imediatamente os governadores do Paraná, de Goiás e do Mato Grosso do Sul recolheram o livro das escolas de suas redes públicas.
O incomodo dos detratores do livro não se justifica. A obra de Jeferson Tenório, além do seu reconhecido valor literário, aborda temas que dizem de perto à realidade dos alunos das escolas públicas, como o racismo e a violência policial. Muitos desses jovens convivem diuturnamente com essas duas chagas. Por isso mesmo, o livro foi incluído no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD).
Aqui cabem algumas explicações sobre a questão estritamente pedagógica. No PNLD as escolas têm a liberdade de escolher, entre 530 livros, quais obras vão adotar por estarem mais próximas da realidade de seus alunos e do seu planejamento educacional. Não há direcionamento ideológico ou político no Plano Nacional dos Livros Didáticos. Um livro para ser incluído no plano tem de ser avaliado e aprovado por uma banca de educadores, especialistas e mestres em literatura e língua portuguesa.
É inconcebível filtros pautados no cerceamento da liberdade de cátedra, da liberdade de expressão, sem os quais é impossível ofertar uma educação de qualidade. A escritora Djamila Ribeiro adverte, em artigo publicado na Folha de S.Paulo, para a importância dos jovens refletirem criticamente sobre o racismo e a violência. Segundo ela, “educadoras e educadores devem estar atentos para não incorrerem numa tentativa de blindagem de jovens à reflexão crítica sobre as dinâmicas sociais raciais na sociedade”.
Não se concebe, em um mundo em intensa transformação, uma educação onde alunos e professores não sejam protagonistas. Só assim nossos jovens estarão preparados para discernir o certo do errado e entender o mundo para além dos muros da escola. A censura impede a formação de cidadãos conscientes. Eles não estarão protegidos se ficarem confinados em uma redoma de vidro moralista.
Para além do debate educacional, estamos diante de uma distopia cabocla, na qual a realidade imita a ficção. Em pleno século XXI parece que vivemos na sociedade distópica do livro “Fahrenheit 451”, na qual livros eram queimados pelo governo, com o objetivo de controlar o pensamento e a opinião pública.
As piras contemporâneas nas quais ardem livros proibidos se espalham pelas redes sociais, impulsionadas pela polarização e por ondas de fundamentalismo religioso, xenofobia, racismo e discriminação de gênero.
Fahrenheit continua entre nós.
Em novembro de 2023, a Secretaria de Educação de Santa Catarina ordenou a retirada de nove obras, entre as quais “It, a coisa”, de Stephen King, e “Laranja Mecânica”, de Anthony Burgess. No ano passado, a Universidade Rio Verde, de Goiás, retirou de sua lista de obras literárias recomendadas o livro “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios” por pressão do deputado Gustavo Gayer, do Partido Liberal.
Não são casos isolados. Uma professora foi afastada de uma turma no colégio Vitória Régia, em Salvador, por ter indicado “Olhos d’água”, de Conceição Evaristo. Motivo do afastamento: a pressão de pais incomodados com o tema do livro, a violência contra mulheres negras.
A Secretaria da Educação de Rondônia, chegou a censurar, por “conteúdos inadequados”, livros de Machado de Assis, Carlos Heitor Cony, Euclides da Cunha, Franz Kafka e Edgar Allan Poe. Já no tradicional colégio Santo Agostinho, do Rio de Janeiro, alunos protestaram, em 2018, contra a censura de “Meninos sem pátria”, livro sobre uma família de exilados nos tempos da ditadura.
A nova onda de caça às bruxas nos remete a páginas nebulosas da história da humanidade. A destruição de obras literárias é tão antiga quanto o próprio livro. A rigor, antecede à grande invenção de Gutemberg, a imprensa, que democratizou o acesso ao conhecimento, à cultura e, em especial, à literatura. Tabletas de argila, papiros e pergaminhos foram destruídos ao longo dos séculos, por guerras ou por questões de natureza moral, política, ideológica ou religiosa.
Não podemos esquecer de Savonarola, dos tempos da inquisição. Ele entendia o Renascimento como símbolo da frouxidão moral e da degenerescência. Para livrar Firenze de seus males, patrocinou em 7 de fevereiro de 1497 a queima de livros e obras de artes que, segundo ele, incitavam o pecado da verdade.
Os Savonarolas contemporâneos devem estar surpreendidos com a onda de solidariedade a Jeferson Tenório e com o repúdio à censura. Intelectuais e educadores assinaram um manifesto de protesto, entidades da sociedade civil, como a Câmara Brasileira de Livros, também se manifestaram firmemente em defesa da liberdade de expressão.
A Companhia das Letras, editora do livro, se posicionou de forma clara e contundente: “a retirada de exemplares de um livro, baseada em uma interpretação distorcida e descontextualizada de trechos isolados, é um ato que viola os princípios fundamentais da educação e da democracia, empobrece o debate cultural e mina a capacidade dos estudantes de desenvolverem pensamento crítico e reflexivo”.
Se o objetivo da distopia cabocla era condenar ao anonimato a obra de Jeferson Tenório, não conseguiu o seu intento. O vídeo da diretora de Santa Cruz do Sul e a censura dos três governadores turbinaram a venda de “O avesso da pele”, que cresceu 400%, sendo o livro mais vendido, desde a sexta-feira 1 de março. O livro também recebeu o apoio de respeitadas instituições e de intelectuais de prestígio no país. Para o dia 11 de março foi agendada uma manifestação na Livraria da Travessa em São Paulo com a presença do autor da obra.
São indicativos de que entre muitas pessoas no Brasil ainda pulsam fortes os valores do iluminismo, como tolerância, direito ao dissenso, respeito ao contraditório e liberdade de expressão.
Hubert Alquéres é vice-presidente do Conselho da Associação dos Artistas Amigos da Praça (ADAAP), associação gestora da SP Escola de Teatro, presidente da Academia Paulista de Educação e vice-presidente da Câmara Brasileira do Livro.