Este texto faz parte de uma série de publicações que reúne artigos, entrevistas e depoimento sobre grupos de teatro do Brasil.
POR MARCIO AQUILES
“O Meu Delírio – Textos e Memórias de Encenação”, de Edson Bueno, é uma excelente porta de entrada tanto para os interessados em conhecer a dramaturgia do autor quanto pelos que desejam saber mais sobre interessantes aventuras do paranaense Grupo Delírio. O volume é composto por quatro peças na íntegra, fotos de espetáculos, fac-símiles e artigos sobre o repertório da companhia – fontes riquíssimas sobre o histórico das montagens, processo de pesquisa, ensaios e curiosidades saborosas.
“Um Rato em Família” (1984), por exemplo, foi retalhado pela censura, em seu projeto de cortar as partes que julgava inconvenientes – bem paradoxal, afinal, nos porões militares e nas salas de tortura da vida real valia esquartejamento e estupro, porém “movimentos (pélvicos e sexuais)” em cima de um palco (em um contexto ficcional !!!) eram vistos como perigosos e revolucionários para a sociedade…
Então, o que fez o grupo na estreia? Apagou as luzes nas cenas censuradas e deixou que o som dos atores instigasse a imaginação do público, dando novas camadas à dramaturgia, talvez ainda mais subversivas do que os militares boçais eram capazes de presumir.
Trata-se de um texto bastante forte, construído a partir de referências dos quadrinhos e histórias de terror; há zoomorfismo, masturbação, membros decepados, fome absoluta e uma perversidade inerente a cada personagem. Pode ser lido, contudo, em diversas chaves, do realismo fantástico à paródia nonsense, um teatro pânico em estado de ebulição.
Para encenar “New York por Will Eisner” (1990), depois de uma delicada recusa, ligaram pessoalmente ao quadrinista americano para tentar convencê-lo sobre a potência de uma montagem sobre sua vida e obra. Tiveram aprovação e colocaram 88 personagens no palco, encarnados por 14 atores e uma cantora. A dramaturgia combina marginalidade light, atmosfera noir e melodrama.
Em “Vermelho Sangue Amarelo Surdo” (2003), baseada no livro “Cartas a Théo”, pincela cores dramáticas para compor um retrato da genialidade, do desvario e infortúnio de Vincent van Gogh.
Por sua vez, a dramaturgia de “Metamorphosis” (2005), construída a partir da novela de Kafka, sintetiza um pouco da vasta amplitude de recursos nas mãos do autor e diretor: conflito dramático do mais alto nível no núcleo da família; Kafka 1 e Kafka 2 personificados como narradores metaficcionais; Gregor Samsa como epítome do niilismo do escritor checo.
No fim das contas, o que fica patente é a sofisticação do trabalho de Edson Bueno como dramaturgo e adaptador. São criações viscerais e originais, dando vazão a certo tipo de – sendo muito reducionista aqui, pois sua obra transcende à classificação de gêneros canônicos – teatro alegórico, tão pouco presente na história recente do teatro brasileiro.
Por seu didatismo, o volume deve ter especial alcance ao público não necessariamente iniciado no universo das artes, ou mesmo leitores mais jovens. Há notas de rodapés para absolutamente tudo, com minibiografias de Frank Sinatra a Fritz Lang, de “Macbeth” a Batman, ou explicação sobre o que é síndrome do pânico ou lei de Murphy, por exemplo.
Aos que não tiveram a oportunidade de assistir a encenações do grupo, ao ler o livro, certamente serão seduzidos por uma vontade de adentrar nesse universo delirante, e que resultou na trajetória expressiva e singular desse importante coletivo.
MARCIO AQUILES é escritor e crítico de teatro. Coordenador de Projetos Internacionais da SP Escola de Teatro.