POR MIGUEL ARCANJO
O diretor da SP Escola de Teatro e cofundador da Cia. Os Satyros, Ivam Cabral, está de volta ao cartaz com o solo “Todos os Sonhos do Mundo”, que iniciou nova temporada no último domingo (26), sob direção de Rodolfo García Vázquez.
Em março, Cabral cumpriu temporada online da peça, logo após a quarentena ser decretada oficialmente no Estado de São Paulo, fechando obrigatoriamente todos os teatros e serviços não-essenciais.
A obra agora tem sessões domingos, 20h, e segunda, 21h, no Espaço Digital dos Satyros no Sympla.
Nesta entrevista, o ator e dramaturgo conta todo esse processo e fala do retorno da peça que já faz parte da história do teatro brasileiro e mundial.
Miguel Arcanjo Prado – Como é ter sido o primeiro ator não só no Brasil como no mundo a ficar em cartaz ao vivo de forma digital, em live, com uma peça de teatro?
Ivam Cabral – Acho que eu estava no lugar certo, na hora certa e com pessoas certas, rs. No início de março, a SP Escola de Teatro recebia o encenador português Rui Germano, que chegou uns dias antes do Carnaval para um curso de Extensão Cultural. Poucos dias após a sua chegada, passamos a acompanhar de perto a pandemia que estava destroçando a Europa. Assim, por volta do dia 10 de março, já tínhamos decidido que o Espaço dos Satyros não retornaria com a sua programação naquele fim de semana. Porque Rui já tinha notícias de amigos e familiares contaminados com o coronavírus. Neste momento, eu estava viajando com Todos os Sonhos do Mundo. Voltava de uma viagem a Cuiabá quando, num respiro, decidimos parar tudo. Não foi nada fácil. Até porque tínhamos uma turnê internacional para fazer, a peça teria viajado para a Europa, dentre tantas coisas legais que estavam acontecendo. Me lembrei, então, de um poema do poeta português Sidónio Muralha que diz “Parar. Parar não paro. (…) Correr, sim, mas sem tropeço. | Mas se tropeçar não paro | – não paro nem mereço”. Daí, o final dessa história você acompanhou. Fui ao Instagram e, no dia 20 de março, comecei a minha epopeia…
Miguel Arcanjo Prado – O que tem de diferente nesta nova versão de Todos os Sonhos do Mundo que volta agora no Espaço Digital dos Satyros no Sympla?
Ivam Cabral – Lá atrás, quando decidimos montar a peça, eu e Rodolfo [García Vázquez, diretor do espetáculo e co-fundador com Ivam Cabral da Cia. de Teatro Os Satyros em 1989] quisemos tirar qualquer teatralidade que poderia acontecer. Na experiência presencial, Todos os Sonhos do Mundo tinha estreado sem música, sem som, sem luz, sem figurino, no seco. Era um trabalho de ator, mais nada. Fazíamos com a luz que houvesse no teatro, com a roupa que eu estava vestindo etc. Se, àquele momento, a gente podia se orgulhar de estar fazendo algo “moderno” (atentos às aspas, rs), no digital, deveríamos continuar fiéis àquela ideia – mas de uma outra maneira, pra dificultar as coisas, mesmo. Assim, a versão digital ganha teatralidade, luz, música, figurino e tudo o que ela tem direito. Porque, aqui, neste ambiente digital, sou eu quem opero luz, som, vídeo e tudo o que for preciso para que a sessão aconteça. Uma doideira. Não posso me desligar um único segundo. Um clique errado e a peça vai por água abaixo…
Miguel Arcanjo Prado – Após ficar em cartaz no começo da pandemia, por que decidiu voltar com a peça em nova temporada?
Ivam Cabral – Eu não havia esgotado ainda todas as possibilidades da peça. Imagine, teria viajado pra quatro países europeus, não fosse a pandemia. Tão difícil receber convite, organizar uma turnê, se programar. Quando tudo parecia lindo, bum, um cometa despenca sobre sua cabeça. Tenho muito o que fazer com este trabalho ainda. É um solo e isso facilita muito as coisas. Sem contar que, por onde passei com ele, não faltou público, nem interesse para assistirem à peça. Depois, o tema é importantíssimo. Falar da depressão é urgente.
Miguel Arcanjo Prado – Você se vê como um abridor de portas para o teatro na esfera digital?
Ivam Cabral – Sinceramente? Não. Me sinto no meio de uma tempestade, tentando conduzir com alguma serenidade meu barco, com minha tripulação e passageiros. Sinto que dependem de mim. No caso, são vidas que precisam desta minha serenidade para conseguirem seguir com suas vidas. Trabalho com centenas de pessoas que dependem do meu trabalho, da minha visão, das minhas estratégias. E enquanto estiverem discutindo se ‘é ou não é teatro’ eu já estava fazendo. Sou um artista essencialmente do teatro. Nunca fiz televisão e tenho apenas um trabalho como ator no cinema. Se o que eu faço no mundo digital não é teatro, não sei o que seria teatro.
Miguel Arcanjo Prado – Agora até mesmo atores como Irene Ravache e Sergio Mamberti estão fazendo peças online. O que acha disso?
Ivam Cabral – Acho sensacional. E quer saber? É nossa obrigação. Nada mais do que isso. Precisamos ir aonde o povo está, já diziam seus conterrâneos, Fernando Brant e Milton Nascimento. Depois, o teatro, que veio das ruas e do povo, sempre esteve em todas as pontas da sociedade: nas igrejas, nos palácios, nas escolas, nos hospitais, nos shoppings… Chegaria à internet, mais cedo ou mais tarde, é óbvio!
Miguel Arcanjo Prado – Você está em outro sucesso digital, A Arte de Encarar o Medo, que já ultrapassou 10 mil espectadores com 17 pessoas no elenco. Como é fazer parte deste sucesso virtual?
Ivam Cabral – Surpreendente, muito mais incrível do que tínhamos imaginado. Em dois meses, já fomos assistidos por mais de 10 mil pessoas! Dos lugares mais improváveis que você possa imaginar: Islândia, Rússia, Suécia, Finlândia, Dinamarca, França, Espanha, Portugal, Cabo Verde, Senegal, África do Sul, Estados Unidos, Uruguai, Argentina, Alemanha, nossa, muitos lugares! Sem contar que unimos o Brasil, né? É muito incomum termos espectadores do Brasil inteiro em nossas plateias. Com o teatro digital, o teatro deixa de ser regional e vira um evento mundial. Isso é o que é. Exemplo mais maluco. Em nossa estreia em São Paulo, os grandes jornais daqui não deram uma nota. Por outro lado, o Segundo Caderno de O Globo deu primeira página e a Veja Rio noticiou com destaque. Isso é extraordinário!
Miguel Arcanjo Prado – Como surgiu a ideia de fazer uma versão internacional para “A Arte de Encarar o Medo”? Como tem sido os ensaios?
Ivam Cabral – Inicialmente, Ulrika Malmgren – atriz sueca que atua nesta versão brasileira e que é do grupo Darling Desperados, em Estocolmo – pensou nesta possibilidade, de fazer uma versão europeia. Mas daí, foram aparecendo atores que viviam na África e, então, a gente fez este recorte. A partir de então, África e Europa se uniriam para contar a saga de um povo que permaneceu 5.555 dias isolado um do outro e que estreia em 1º de agosto. Mas a peça também está ganhando uma versão norte-americana, que deve estrear no início de setembro, com atores de Los Angeles e Nova Iorque. Temos futuro!
Miguel Arcanjo Prado – Mesmo quando o presencial voltar, o Satyros manterá produções específicas para o digital online?
Ivam Cabral – Sim. Inclusive temos dito que, mais do que estrear uma peça na internet, inauguramos um espaço na nuvem. O Espaço Digital dos Satyros vai permanecer independentemente da pandemia. É um lugar onde poderemos experimentar muitas coisas que seriam impossíveis no presencial. Tem sido uma bela experiência.
Miguel Arcanjo Prado – Como tem sido seu cotidiano nesta quarentena?
Ivam Cabral – Sou um privilegiado. Moro na zona sul da cidade, à beira da represa Guarapiranga, numa região de preservação ambiental. No meu quintal tenho macacos, preguiças, quatis e uma infinidade de serezinhos encantados. Pela vida maluca que levávamos, tinha pouquíssimo tempo para conviver com estas maravilhas. No confinamento, além de trabalhar muito – muito mesmo! –, foi me sobrando tempo para olhar para coisas que sempre estiveram a meu lado, mas que eu não tinha observado antes. Plantei rosas, adquiri o hábito de acompanhar o pôr do sol todos os dias – todos os dias mesmo! –, ler poesias. Ainda encontrei tempo para iniciar uma nova formação. Estou estudando Psicanálise e muito animado com a vida.
Miguel Arcanjo Prado – O que você mais sonha hoje em dia?
Ivam Cabral – Sonho muito, sou um sonhador obsessivo, rs. Embora, atualmente, bastante desesperançoso, acredito muito na força humana. Acho que temos, ainda, muita potência para a reinvenção do mundo. Por exemplo, este tempo de retrocesso é tempo, nada mais do que isso. E vai passar. Se observarmos, perceberemos esses movimentos na história da Humanidade. Mas o que ficará, certamente, serão os olhares para a empatia, claro que sim. Temos futuro!
CULTURA EM CASA
Assim como outros equipamentos, a SP Escola de Teatro criou uma programação especial na internet para oferecer ao seus seguidores. Assim, está disponível uma série de conteúdos multimídia, como vídeos de espetáculos e de palestras e bate-papos de nomes como as atrizes Fernanda Montenegro, Nathalia Timberg e Denise Fraga, a monja Coen, a escritora Adélia Prado e o pastor Henrique Vieira, além de cursos gratuitos a distância.
O acervo ainda inclui filmes produzidos pela Escola Livre de Audiovisual (ELA) – iniciativa da Associação dos Artistas Amigos da Praça (Adaap), gestora da SP Escola de Teatro – em parceria com instituições internacionais, com a Universidade das Artes de Estocolmo (Suécia).