Esse menino Gero Camilo,
Esse poeta,
Esse cara, eu conheci na flor das descobertas. Quando, juntos, experimentávamos o que viria a significar o resto das nossas vidas.
Era 1994,
Estávamos entrando na Escola de Arte Dramática.
Já havíamos nos decidido a enveredar por esse caminho, todos nós ali, pelo teatro, mas nem imaginávamos os desdobramentos que viriam a partir dali.
Ali era o começo da lapidação da pedra bruta, a alma do artista sendo encaminhada, instrumentalizada para depois ganhar mundo.
Foi sorte ter sido assim.
Foi sorte encontrar exatamente aquelas pessoas para, durante quatro anos, compartilhar tão profundo pacto.
Errar, aprender, viver, enfim, mestres abrindo portas e, pela frente, parceiros para uma vida toda, tesouro.
O Gero é um tesouro.
Inevitavelmente meu tesouro, pois, além do irmão, eu descobria, ali, um artista de uma liberdade e criatividade sem fronteiras, de uma poesia tão própria e tão universal, que tatuaria minha história por admiração e, mais além, pela eterna cumplicidade criadora, por ser nossa.
Certamente também um tesouro para a arte. Para este País e tantos outros, para vários artistas, pois, desde lá até aqui, onde estou considerando ser a metade do nosso caminho, ele já produziu tantas obras, tamanha a derrama, tesouro, o legado desse menino.
Desde sempre, Gero, com o seu natural espírito de liderança e de encaminhamento das coisas, foi eleito o porta voz, uma espécie de paraninfo-poetinha-militante. Nas veias, a inquietação e o sangue fácil de ferver quando defende avidamente um ideal, um sonho, uma paixão ou mesmo pela necessidade de ver saído um simples grito atravessado na garganta.
Sempre foi assim.
Desde sempre.
Desde sempre, seus textos incríveis, essa capacidade de jorrar poesia e construir narrativas com muita maturidade, humanidade, e, desde sempre, a pureza presente que liga, chega, toca fundo tantos lugares em nós. Ele tem essa capacidade de mostrar a essência até na cor que ela tem.
Isso, desde quando saíamos da sala de aula, atravessávamos a praça do relógio e nos instalávamos no seu quarto, no Crusp, para mergulhar nos textos fresquinhos, recém saídos da sua cabeça.
Para experimentar fazer caber em nossas bocas.
Assim foi com muitos textos, alguns conhecidos, outros ainda não, pois naquele computador dele, até hoje, é só fuçar que saltam de lá novas peripécias dramatúrgicas de personagens inéditas, das quais eu nunca ouvi falar; novas tramas, enfim, um mundo naquele computador.
Foi assim com “Entreatos”, “As Bastianas”, “Ímpares”, “Cleide, Eló e as Pêras” e “Aldeotas”, que veio depois, não está em seu livro, mas também foi deflorada logo logo pelos nossos ouvidos e bocas.
Foi assim com toda a “Mácuba da Terra”, sem ela ainda existir em forma de livro.
Brincamos, hoje em dia, que esse foi o livro mais exprimido possível. De lá para cá, tantos filhotes, tantas peças e filmes foram feitos de suas histórias.
Depois, veio o cinema em sua vida, e que, ao longo desses anos, projetou o seu talento, que tanto impactou, logo de cara, com “Bicho de Sete Cabeças”.
Era tudo tão real que, um dia, conheci uma moça que estava fazendo uma tese sobre o louco que ele representava no filme. Depois de muitas gargalhadas internas, tive que contar para ela que ela acabava de perder o seu assunto de tese, pois esse louco era um ator.
E, claro, que, desde então, o cinema lhe estendeu todos os seus vermelhos tapetes. Já perdi a conta de tantos filmes feitos e tantos ainda na fila por fazer.
Tem a Fuleragem Filmes, nosso coletivo de cinema, onde suas experiências cinematográficas puderam ser vividas a partir de outros ângulos.
Tem, também, a música, com a qual ele foi ganhando tanta intimidade e encanto, um sem fim de pérolas, poesias melódicas. E esse intérprete, performer, cantor carismático que faz o entorno desabar tanta água.
Enfim, é uma profusão de tantas coisas feitas, até agora, que poderíamos ficar dias aqui para citar uma a uma.
A criatividade nele brota, limites não existem, barreiras não resistem.
Para ele, desde sempre foi claro que o artista tem o direito e a capacidade de se expressar na linguagem ou formato ou meio que bem entender.
Um dia, há pouco tempo, eu estava em casa, com ele, conversando sobre a minha vontade de me aproximar da música, e ele me disse: “amor, é muito fácil fazer música. Não tem mistério. Vamos lá, pega um poema seu.
Bora lá experimentar uma melodia”.
E, pouco tempo depois, tínhamos uma música.
Mágica!
Isso me encanta, compactuo com essa maneira natural de viver arte, tanto quando ele te ensina a fazer uma música ou quando você simplesmente o vê num palco, ou na tela de um filme, encarando um personagem e te fazendo crer veementemente que esse cidadão que se utiliza de sua carne tem uma vida própria, absolutamente diferente da dele.
Sua capacidade de se expressar, a facilidade com que agrupa palavras e, alquimicamente, as transforma em textos poéticos, banhados de imagens, em ato, em melodia.
Sua entrega devota o respeito, que faz jus ao menino que desistiu de ser padre para dedicar-se a outro sacerdócio.
Esses Geros todos moram dentro de um homem, que tem muitas coisas para dizer e sabe fazê-lo de tantas formas, e, com um entendimento tão refinado e perspicaz da natureza do homem e de seu tempo, que amplia perspectivas, expande e deixa em depoimento um documento de sua época.
E não posso deixar de citar ainda o parceiro de cena, generoso, com quem tenho sempre a máxima alegria de contracenar, só com um olhar sabemos um do outro.
E assim nos transportamos ao estado mais essencial da cena, mais cúmplice. Desde o avassalador Eló, até o atentado Veludinho, sempre futricando com Neusoca enquanto a Navalha se afia.
Enfim, esse é um breve depoimento dos desdobramentos de talento desse meu irmão, parceiro de estrada, que ainda tem tantas sementes para largar por ai e tantas árvores frutíferas para poder colher.
As cestas estarão sempre cheias de poesia.
Veja os verbetes de Paula Cohen e Gero Camilo na Teatropédia.
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