Conheci Fauzi Arap por intermédio de sua sobrinha, minha amiga e colega do curso de Engenharia Civil, que estava prestes a abandonar, no início dos anos 1990.
Confuso, apaixonado por teatro e sem saber o que estudar, o que fazer, aonde ir, ouvia com certo desdém arrogante – típico da idade – a insistência de minha amiga para que conhecesse seu tio famoso, “um sábio”, em suas palavras, que me ajudaria a resolver o dilema, pois ele havia concluído Engenharia Civil na mesma faculdade que cursávamos e se tornado um ícone do teatro.
A ideia de conhecê-lo, sinceramente, não me animou. Sou tímido e avesso a encontros marcados.
Passados alguns meses, participei da montagem de “Nossa Vida em Família”, de Oduvaldo Viana Filho, com o grupo de teatro amador com quem sempre atuei.
Na estreia, um senhor me procurou no camarim. Dispensando os costumeiros cumprimentos, foi logo disparando:
– Você é o Luís? Sou tio da Cris, sei que você está largando o curso de Engenharia. Posso fazer seu mapa astral?
Eu, ator, vaidoso, queria que ele analisasse minha atuação, comentasse a peça. Ele queria fazer meu mapa astral. Fazer o que?
Mas a visão do “mito” me atordoara. Alertei-o de que não acreditava em bruxas e lhe informei data, hora e local de meu nascimento.
Foram quatro horas de “terapia”, com o Fauzi Arap descrevendo com minúcias minha relação com o teatro, com meus pais, irmãos, namoradas. Minha psique exposta em desenhos estranhos, em que caudas de dragão atravessavam a lua e tudo desaguava em Aquário. E mil histórias sobre astrologia, ácidos, sonhos e palcos iluminados.
Passados uns dez anos do inesquecível encontro, nosso grupo de teatro estava à busca de um diretor.
Todos os colegas de elenco conheciam a história do mapa astral e sugeriram que eu convidasse Fauzi Arap para nos dirigir.
Argumentei que estavam loucos. Que não teríamos dinheiro para pagá-lo. Que nosso nível de amadorismo, por mais que nos esforçássemos, ainda que tivesse diminuído em relação a outros tempos, não seria condizente com a estatura de um Fauzi Arap. Que era um devaneio, etc. Ainda assim, fui vencido com o argumento de que o contato seria de qualquer forma proveitoso e que um “não” de Fauzi Arap não seria algo tão difícil assim de se digerir.
E não foi mesmo. Como toda a delicadeza e a humanidade que empresta a seus gestos, Fauzi agradeceu o convite, disse que estava meio afastado do teatro e sugeriu que contratássemos Nilton Bicudo, jovem e talentoso ator que começava a se aventurar, já com algum sucesso, nas searas da direção.
Bem recebido pelo grupo, Niltinho queria montar alguma peça do Tennessee Williams, dando sequência aos estudos sobre o dramaturgo americano que vinha realizando havia algum tempo.
Mas como o grupo era grande e democracia é uma merda, metade dos atores sempre ficava descontente com o resultado das leituras e as propostas apresentadas.
Depois de uns oito textos recusados e um mês de ensaio “perdido”, Niltinho veio com a brilhante ideia:
– O Fauzi tem um texto inédito. É meio socialista, não sei se o pessoal daqui vai gostar, mas a gente podia pedir pra montar.
Da mesma forma que reagi com o grupo anteriormente, o fiz, agora, com Niltinho:
Argumentei que estava louco. Que não teríamos dinheiro para pagá-lo. Que nosso nível de amadorismo, etc. Que era um devaneio.
Mas desta vez, Fauzi aceitou. Disse que o texto “estava engavetado há muitos anos e que aquela energia precisava circular”.
Disse, ainda, que viria acompanhar apenas alguns ensaios. Depois de um mês, cioso que é de sua obra, acabou por assumir a codireção. E sem cobrar um tostão por isso, é bom que se diga.
Vale lembrar que estamos falando de um diretor premiado, um dramaturgo consagrado, doando um texto inédito para um grupo de teatro amador.
Foram quatro meses de aprendizado intenso. Mesmo quando não estava escalado, eu fazia questão de acompanhar os ensaios para observar a forma como Fauzi conduzia a direção do espetáculo.
Sua busca pela perfeição era incessante. A afinação da luz consumia horas, até achar o ajuste exato de cada refletor. As cenas eram repetidas infinitas vezes, até que o ator tivesse condições de assimilar o movimento. E se a perfeição ainda não tivesse sido alcançada, estávamos ali para repetir.
E ele, o mais velho de todos nós, o mais “frágil”, não conhecia a palavra “cansaço”.
O que mais me assombrava, contudo, era sua generosidade, sua capacidade de se colocar no lugar do outro, compreender suas dificuldades e orientá-lo para suplantá-las.
Em segundos, os segredos mais profundos da alma de cada ator eram desvendados. Fauzi conhecia o ponto certo e, como um acupunturista experiente, colocava a agulha no ponto nevrálgico para atingir o resultado esperado, sem, jamais, erguer o tom de voz de forma agressiva ou desnecessária.
Ainda que estivesse coberto de razão, o puxão de orelha vinha sempre acompanhado de um pedido de desculpas, um afago, um sorriso atencioso, uma mão estendida para a caminhada.
Mais que um gênio do teatro, Fauzi Arap é, sobretudo, um investigador da alma humana. Daí, talvez, seu gosto por mapas astrais.
Para ele, o teatro é uma forma de conhecer pessoas. O ator em cena, despido de suas máscaras e amarras sociais e psicológicas, é sua cobaia. O ser humano in natura, seu objeto de estudo.
Isso explica porque, apesar do imenso talento para a atuação, tenha tão cedo optado por trilhar o caminho da direção. Sem estrelismos, sobra mais tempo para observar estrelas.
Nos dias de hoje, sob o império do individualismo, do narcisismo, em que tantos jovens desorientados buscam no teatro um caminho para a televisão, em que a vaidade se assenhora das pessoas numa busca efêmera pela fama, Fauzi Arap é espécie em extinção.
Não, apenas, por seu senso artístico aguçado, sua sensibilidade à flor da pele, sua delicadeza meticulosa, mas, sobretudo, por sua generosidade, sua simplicidade, seu olhar para o outro.
Fauzi não gosta de sair de casa, não dá autógrafos, não gosta de ser fotografado. É um artista completo, que mantém o foco em sua obra, não em seu público.
Para Fauzi Arap, o teatro não é um lugar para vaidades profanas, é um centro de estudos, um templo da natureza humana, do sagrado.
Luís Nader é ator, advogado e controller da SP Escola de Teatro.
Veja o verbete de Fauzi Arap na Teatropédia.
Para ver os outros depoimentos que compõem a semana em homenagem ao Dia Mundial do Teatro, clique aqui.