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SP Escola de Teatro entrevista Rachel Rocha, conselheira da ADAAP

Publicado em: 02/08/2023 | por: Beatriz Ennes

Fotografia colorida de Rachel Rocha

Rachel Rocha, conselheira da Associação dos Artistas Amigos da Praça (ADAAP) | Foto: Divulgação

A SP Escola de Teatro, criada e gerida pela Associação dos Artistas Amigos da Praça (ADAAP), entrevista em 2023 todos os seus 13 conselheiros.

Inaugurada em 2010, a SP Escola de Teatro é uma instituição da Secretaria de Cultura, Economia e Indústria Criativas do Estado de São Paulo.

A associação é uma Organização Social e exemplo do modelo de gestão de Políticas Públicas que vem sendo implantado pelo governo do Estado desde 2004, com base na Lei Complementar n° 846/98 e no Decreto Estadual nº 43.493/98. Através da publicização, ou gestão pública não estatal, serviços e atividades públicas são geridos por meio de parcerias entre o Estado e o terceiro setor.

A ADAAP faz parte da Associação Brasileira das Organizações Sociais de Cultura (Abraosc) e tem por finalidade desenvolver e administrar projetos socioeducacionais, culturais e institucionais, valorizando a arte e a educação no estado de São Paulo.

Rachel Rocha

A entrevistada de hoje é Rachel Macedo Rocha, mãe, advogada e amante das artes. Ativista de Direitos Humanos e da Diversidade Sexual de Gênero, doutoranda na EACH/USP e pesquisadora dos estudos de gênero. Está Vice-Presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/SP. Ela é coordenadora Municipal de SP, da Aliança Nacional LGBTI+, da Associação Brasileira de Intersexo – Abrai, da Associação de Profissionais para a Saúde Integral de Pessoas Travestis, Transexuais e Intersexo – ABRASITTI.

Rachel está no conselho fiscal da ADAAP desde sua criação, em 2010. Ela quem sugeriu a criação de um projeto de empregabilidade de pessoas trans dentro da SP Escola de Teatro e também incentivou que os processos de contratação colocassem mulheres para dentro da Escola.

A SP Escola de Teatro é uma das instituições pioneiras na questão da empregabilidade trans e parte de seu quadro de colaboradores é formado por pessoas que não se identificam com a cisgeneridade. Em 2019, a instituição recebeu o Selo Paulista de Diversidade, instituído pelo Governo do Estado de São Paulo, que destaca boas práticas organizacionais relacionadas à inclusão na política de gestão de pessoas das organizações, a preocupação e inclusão das temáticas das pessoas com deficiência, e às questões étnicas, raciais, de gênero, idade, orientação sexual e identidade de gênero, assim como para difundir a cultura de respeito, valorização e promoção da igualdade nos ambientes de trabalho.

Com sua direta contribuição sobre as questões de diversidade de gênero dentro da ADAAP, Rachel também sugeriu que a Escola fizesse um evento para celebrar o dia da visibilidade trans, o SP Transvisão. Em todas as edições, ela participou da coordenação organizadora do evento. O SP Transvisão, que já teve 11 edições desde 2013, é um movimento sociocultural de legitimação e representatividade dos corpos trans, desenvolvido com profissionais especializados em cada área e promove uma série de ações voltadas para o debate sobre a tolerância e a diversidade, além de valorizar a cultura e o universo LGBTQIA+.

Confira a entrevista com Rachel Rocha

Como se deu sua entrada no conselho da ADAAP? Por que, para você, é importante participar desse conselho e contribuir para a associação?

Fui convidada a entrar no conselho quando a ADAAP foi criada, em 2010. Tem todo um contexto por trás até eu chegar ao conselho. Frequentei muito a Roosevelt no início dos anos 1990 e ia muito ao Cine Bijou no final dos anos 1980. Nessas circunstâncias, acabei me aproximando do Ivam Cabral e do Rodolfo García Vázquez, principalmente por conta da Maria Clara Spinelli.

No começo dos anos 2000, eu já estava participando de algumas organizações não-governamentais voltadas para a diversidade sexual. Quando me convidaram para ser conselheira da ADAAP, eu aceitei, mesmo não sendo uma profissional voltada para o teatro. Me lembro que, no dia da primeira reunião, o secretário estadual de Cultura de São Paulo, João Sayad, disse que a ideia do conselho da SP Escola de Teatro não era ter os notáveis do teatro, mas ter pessoas que gostam de teatro e que de alguma forma poderiam contribuir. Eu penso que é exatamente isso e durante todos esses anos no conselho fui me engajando, principalmente na questão do debate da questão de gênero, não só da diversidade sexual, mas de gênero, das mulheres e de todos os direitos de ser quem se é.

Para você, qual a importância e o impacto do trabalho da ADAAP e da SP Escola de Teatro?

Participei todos os anos do SP Transvisão e sempre ajudo na coordenação organizadora do evento. Para mim, este é um impacto muito importante no trabalho da Escola. Quando construímos o primeiro SP Transvisão, nós convidamos representantes de vários movimentos trans, chamamos algumas entidades. Na época eu já estava na vice-presidência da comissão de diversidade da OAB, então eu também trouxe outros colegas da OAB.

Cada ano do evento conta com um tema e a partir dele a gente faz uma programação ao longo de uma semana, sempre procurando a representatividade e oferecer um lugar para essas pessoas falarem, sejam elas pesquisadoras, acadêmicas, artistas, militantes, de várias áreas do conhecimento e as próprias pessoas que participam do movimento trans. Nos anos da pandemia, 2021 e 2022, o SP Transvisão foi realizado de forma virtual com a ideia de mostrar o impacto da doença na vida daquelas pessoas e o quanto elas ficaram suscetíveis durante todo aquele período ficando isoladas.

A ADAAP trazer isso para dentro da SP Escola de Teatro tem um impacto muito grande. A Escola faz questão de abordar as discussões do SP Transvisão ao longo do ano e as pessoas sabem que a Escola tem esse compromisso.

Para você, qual a importância das artes cênicas e das artes do palco? Qual o papel transformador do teatro na vida das pessoas e na sociedade?

Quando eu já estava nessa movimentação toda, a Cia. Mungunzá de Teatro fez uma peça que se chama “Luis Antonio-Gabriela” e, quando eu fui assistir à peça, acabei me aproximando dos integrantes da companhia. Depois disso fiquei sabendo que o espetáculo estaria em cartaz na semana da Parada LBGT, então eu sugeri que em algum dos dias daquela semana fossem pessoas trans assistir à peça. Até porque existem inúmeras dificuldades para que essas pessoas tenham acesso a qualquer equipamento cultural. Eu as acompanhei no dia e vi como tudo aquilo teve um impacto muito grande na vida de cada uma. Porque se sentiram representadas na peça ao verem que as histórias são muito parecidas. Os temas de violência, conquista e fracasso são abordados pelo espetáculo. Foi uma emoção pura, tanto dos artistas quanto das pessoas que foram assistir.

Então eu acho que o teatro tem uma importância na vida das pessoas. Acredito que seja um antídoto para nossas angústias, como uma vacina para nos salvar de situações e também de nos ajudar a ter uma reflexão crítica, de pensar nas pessoas e no mundo. Ele tem um poder transformador ao longo da humanidade e continua com esse papel. Se o mundo é melhor hoje, é por conta das artes de um modo geral.

Como cultura e teatro estão presentes em sua vida e em sua carreira? Como você relaciona a área da cultura com a área jurídica?

O Direito é muito engessado e conservador, mas eu trago a cultura para as minhas peças judiciais como uma provocação, principalmente pelo fato de trabalhar com os direitos humanos. Uma vez eu provoquei meus colegas de área para que a gente inserisse mais poesia nas nossas peças judiciais, porque a gente precisa sair desse lugar que a palavra, o que seria o código, está escrita lá na doutrina e não podemos mudá-la. Proponho a eles que possamos escrever de um outro modo, porque é possível fazer isso, sem perder a noção de se fazer justiça.

Quando o Supremo Tribunal Federal reconheceu o casamento entre pessoas do mesmo sexo, ele colocou um trecho do livro “Grande Sertão: Veredas”. Eu fiz isso nas considerações finais do meu mestrado, o qual eu pesquisei dentro da área de decisões, começando com uma frase de Grande Sertão Veredas. A gente tem que fazer mais isso, não falar do direito só pelo direito.

Em uma das decisões mais bonitas em relação à retificação do nome de uma pessoa trans, o relator traz no corpo da decisão uma poesia de Guilherme de Almeida, que é uma coisa belíssima.

Como que a gente relaciona direito e cultura? Como que a gente desconstrói esse vocabulário pesado do direito? É trazendo a arte para dentro da nossa área. Deixando as coisas mais leves e mais agradáveis de ler.

A cultura sempre esteve presente dentro da minha família, principalmente pela influência de meus irmãos, que levavam a literatura para dentro de casa. Quando eu decidi entrar na área jurídica, esses conhecimentos literários continuaram em mim, não estão dissociados. E assim fui construindo a minha trajetória.

Como a nossa sociedade, unida – governo, entidades, cidadãos -, pode pensar em ampliar mais a cultura e as artes na cidade e no estado, aumentando o seu papel imprescindível de transformação e educação?

Eu acho que todos esses atores, governo, entidades e cidadãos, têm que incentivar e fomentar cada vez mais a cultura. Quando eu assisti àquele documentário “AmarElo”, do Emicida, vi toda uma trajetória e o quanto foi difícil chegar onde eles chegaram. Hoje, na periferia de São Paulo existe um mundo de manifestações culturais acontecendo e é preciso que aquelas pessoas façam isso naquele lugar.

Quando a gente pensa no Carnaval e na relação dele com a comunidade, existe uma relação revolucionária e transformadora, porque quando eles escolhem um tema, a comunidade conhece toda a história que contextualiza o tema. Eu acho que os governos precisam estar mais atentos para irem mais para essas comunidades e incentivar mais o que é feito lá. Precisa acabar essa elitização da arte e aumentar as possibilidades para que essas pessoas da periferia tenham acesso à arte. Vejo que já tem muitos grupos de teatro, não só daqui de São Paulo, que têm feito isso.

Qual livro, filme, peça ou outro trabalho artístico você recomendaria para uma pessoa que quer conhecer mais sobre o Brasil atual, entender mais onde vivemos, e agir a partir disso?

Eu gostaria de sugerir o livro “Torto Arado”*, de Itamar Vieira Junior, porque é um resgate de nossa história. Penso, na minha humilde opinião, que cada brasileiro e brasileira deveria ter acesso ao livro. Fiquei pensando muito nos meus ancestrais, sobre as mulheres potentes como aquela mãe do livro. É sobre a vida e sobre esse nosso ziguezaguear em torno de nossos ideais, de nossas lutas. Tem uma passagem linda no livro que nos diz sobre isso: “Se o ar não se movimenta, não tem vento. Se a gente não se movimenta, não tem vida”.

Também quero sugerir dois filmes recentes que nos remetem muito ao Brasil e à nossa história: “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019, e “Marighella”, de Wagner Moura, 2021. “Bacurau” nos faz refletir sobre as violências do presente que está presente nas cidades, no meio ambiente, no nosso cotidiano, no trabalho e sobre quem se vale dessa violência naturalizada pelo capitalismo. Penso que ele nos alerta sobre o direito de matar e o de quem merece viver e refletir sobre o futuro. Mas é um filme que reflete muito sobre os riscos de retrocessos políticos que passamos, não só no Brasil, mas no mundo.

“Marighella” retrata um momento difícil para nosso país e que as gerações atuais devem assistir. É sobre um passado recente que a gente deve insistir para nunca mais voltar. Minha infância e minha adolescência viveram nesse tempo e foi uma triste experiência, pois, mesmo longe das grandes cidades, eu tinha noção do que ocorria com o nosso país e com a restrição de direitos. O ir e vir é algo que temos de valorizar muito hoje. Não há liberdade sem democracia e é isso que esta e as futuras gerações devem ter em mente.

Sobre uma peça de teatro, eu já perdi a conta de quantas peças de teatro me emocionaram, mas deixo aqui a sugestão de “As Bruxas de Salém” em cartaz nos Satyros, com a direção de Rodolfo García Vázquez. A peça, embora escrita por Arthur Miller em 1953, é um convite à reflexão sobre o tribunal dos moralistas dos últimos quatro anos que experimentamos no Brasil. Nós sabemos o que foram esses anos nebulosos para o país, que já vivia sob o medo de uma crise pandêmica. Também um alerta para que nunca mais a gente deixe voltar.

* A Biblioteca da SP Escola de Teatro possui em seu acervo o livro “Torto Arado” disponível para empréstimo aos estudantes e para consulta à comunidade.

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