Para o artista visual sueco Per Hüttner (1967), o mundo contemporâneo acelerado e repleto de novas tecnologias, marcado pelo bombardeio de informações e estímulos, requer dos artistas de todas as áreas um constante estado de atenção. A cada dia, é preciso lutar para não confundir arte — que promove complexidades e diferentes pontos de vista — com mera propaganda — que prioriza o pensamento único e a polarização simplista de ideias. “A arte demanda algo de seu público e necessita de nosso engajamento, tempo e atenção, enquanto a propaganda nos faz sentir preguiça e dissociação das pessoas e das coisas ao nosso redor”, diz.
Per Hüttner nasceu em 1967, em Småland, Suécia. Ele se formou em Konsthögskolan (Royal Institute of Art de Estocolmo), em 1993, e também estudou em Berlim, na Hochschule der Künste (Academia de Artes de Berna). Ao longo da carreira, trabalhou com a interseção de fotografia, performances, instalações e novas tecnologias, investigando questões como impermanência, computação e ciência. Ele divide sua vida e trabalho entre Paris e Estocolmo e é o criador do grupo experimental Vision Forum.
Hüttner esteve duas vezes na SP Escola de Teatro. Primeiro, em novembro de 2014, quando a escola recebeu o evento de encerramento do projeto de pesquisa “Catastrophe & Heritage”, do coletivo performático europeu OuUnPo (Ouvroir d’Univers Potentiels). Na ocasião, Hüttner fez a curadoria do evento performático “Sem Palavras”, ao lado de Marcio Aquiles, coordenador de projetos internacionais da escola. Na segunda vez, em 2019, o artista ministrou o curso “Romantismo Transdisciplinar”, ao lado de Carima Neusser, que uniu exercícios físicos e de performance com discussões teóricas a partir das pinturas românticas nórdicas.
Marcio Aquiles conversou com Hüttner, que falou sobre seus atuais projetos de pesquisa envolvendo comunicação e tecnologia, sobre o impacto da “guerra cognitiva” e da política no trabalho atual dos artistas e também sobre a influência da cultura brasileira em suas pesquisas.
Confira a entrevista:
Você pode nos contar um pouco sobre os principais projetos que o Vision Forum está desenvolvendo no momento?
O Vision Forum é um laboratório móvel, uma comunidade aberta e uma plataforma para o desenvolvimento de novas formas de produção e apresentação de performances interdisciplinares. Em todos os nossos projetos, profissionais de diferentes disciplinas, gêneros e culturas se unem para aprender uns com os outros. Atualmente, estamos com 13 projetos em processo, de naturezas bem variadas. Entre eles, há um projeto de dança onde desenvolvemos coreografias baseadas em como o embrião se move e cresce no útero. Em outro, artistas visuais da Suécia, do Egito e da Síria se uniram para verificar se a hipnoterapia poderia ajudá-los a criar um trabalho que fosse fiel aos seus desejos mais profundos — ou seja, queremos ver se a hipnose pode ser uma maneira de se desviar de certas pressões sociais e econômicas que recaem sobre os artistas.
Em outros dois projetos, estamos trabalhando com o que chamamos de “Comunicação Interespécies”. Estamos usando tecnologias digitais para permitir que seres humanos interajam com o interior de criaturas vivas de outras espécies. Em um deles, usamos o sistema de sinais internos das árvores (o “sistema nervoso” delas) para criar sons que podem ser ouvidos pela audiência em tempo real. Ao mesmo tempo, medimos em tempo real a atividade cerebral do público e usamos isso para criar sons de baixa frequência que, por sua vez, são transmitidos às raízes das árvores, locais altamente sensíveis à vibração sonora. Esse projeto está sendo desenvolvido em parceria com biólogos, que estão investigando como as árvores reagem a mudanças no ambiente, e com neurocientistas, estes especialistas em gravar ondas cerebrais com aparelhos não invasivos, aplicados na pele.
Além disso, em outro projeto, estamos gravando sons que os bacalhaus podem fazer quando acasalam. O macho possui músculos especiais que usa para bater em suas bexigas natatórias, produzindo um som que atrai as fêmeas. Usamos esses sons para criar música para o público. E, novamente, medimos as respostas do sistema nervoso humano para modular outro som e enviá-lo de volta aos peixes. Estes dois exemplos mostram nossas tentativas de criar plataformas onde o público possa refletir sobre as diferenças e similaridades entre seres humanos e outras espécies. Esperamos ser parte de um movimento onde o nosso olhar direcionado às outras espécies que nos cerca se torne um pouco menos antropocêntrico.
Como você vê pautas políticas — como o crescimento da extrema-direita global, a disseminação de fake news e a guerra na Ucrânia — afetando os performers contemporâneos? Você acredita que existe, atualmente, alguma pressão para que esses tópicos sejam mais discutidos que temas e abordagens mais estéticas e abstratas?
Essa é uma questão muito complexa e exige algumas digressões. Primeiro: todos nós sabemos que nossas vidas estão mudando muito rapidamente. Se antes falávamos somente de assuntos pessoais com nossos familiares, agora começamos a discutir política com eles, gerando conflitos. Estamos brigando com nossos amigos de infância por causa de política. A vida parece estar piorando, ou não conseguimos mais compreendê-la como antes. É como se houvesse um estranho poder invisível causando uma polarização política deliberada entre nós. E há evidências disso.
Em um estudo publicado em 2020, François du Cluzel fala de uma nova forma de guerra contemporânea, a “guerra cognitiva”, que tem o objetivo de transformar a mente humana em um novo domínio da guerra. Com o excesso de informação e tecnologia, a ideia é gerar dúvidas, conflitos de narrativas, opiniões polarizadas e radicalização nas pessoas, incitando conflitos e fragmentação em sociedades e grupos antes muito coesos. Em um artigo na The Grayzone, Ben Norton cita o artigo de du Cluzel e fala que a guerra cognitiva não é somente uma luta contra o que pensamos, mas também contra o modo como pensamos, em como transformamos informações em conhecimento.
Então parece que o exército tem interesse em saber como tomamos decisões e o que nos compele à ação, desejando assim nos manipular para agir de diferentes maneiras. Também sabemos que, nos Estados Unidos, ao menos onze agências governamentais conspiraram com executivos de alto escalão de empresas de redes sociais, como a Meta, para controlar o que pode ser dito ou não nas plataformas, violando a liberdade de expressão. Inclusive, nos EUA, o procurador-geral do estado do Missouri e o procurador-geral do estado da Louisiana estão processando o governo por causa desse escândalo.
Quis dar esses exemplos, escolhidos entre inúmeros outros, para mostrar como agências estatais criam, propositalmente, polarização entre os cidadãos, como se buscassem criar conflitos e guerras entre aqueles que os elegeram. Mas há esperança. A arte oferece razões para o otimismo. Quando fazemos arte, permitimos que a audiência forme sua própria opinião. Diferente da propaganda, a arte força cada indivíduo a pensar por si mesmo. Assim, nos dias atuais, a arte é mais importante do que nunca. E volto, assim, para a sua pergunta, sobre a pressão por falar de certas pautas na arte performática: devemos tomar cuidado com “arte”, entre aspas, mascarada de arte, sem aspas. Essa “arte” é propaganda, e fala a você o que pensar em vez de fomentar a reflexão.
A verdadeira arte, sem aspas, sempre nos traz para mais perto da vida. Ela desperta nossa curiosidade e nos faz sentirmos vivos. A arte demanda algo de seu público e necessita nosso engajamento, tempo e atenção, enquanto a propaganda nos faz sentir preguiça e dissociação das pessoas e coisas ao nosso redor. Arte é sobre abraçar a vida em toda sua complexidade, não sobre escolher um lado, como faz a propaganda. Quem quer nos convencer de que o mundo é dividido de maneira simplista e pura entre dois lados, entre bem e mal, está tentando ganhar a tal guerra cognitiva. Nunca foi tão importante quanto agora ter um senso crítico apurado para ouvir, ver e ler. É preciso estar sempre atento. Só conseguimos distinguir informação de propaganda quando estamos atentos aos detalhes.
Você esteve duas vezes na SP Escola de Teatro, ministrando cursos e fazendo a curadoria de um festival. Como você avalia a sua experiência conosco?
Trabalhar com a SP Escola de Teatro sempre foi um prazer e uma importante experiência de aprendizado. É um lugar aberto para novas ideias e experimentações e, ao mesmo tempo, não perde contato com a tradição. É importante lembrar que nossa primeira tentativa de fazer música a partir de ondas cerebrais aconteceu na escola. Esse experimento acabou se desdobrando em um importante projeto com artistas, musicistas e neurocientistas que batizamos de EEGsynth
O que tem despertado sua curiosidade na cultura brasileira? O que mais lhe interessa?
A cultura brasileira tem uma influência profunda em mim e na minha prática artística. Particularmente, Lygia Clark me impactou muito e sua arte exemplifica o que me atrai no Brasil. Em seu trabalho, ela reflete em como, no Ocidente, dividimos o mundo entre sujeito e objeto. Ela estava interessada no que acontece quando pensamos para além dessa dicotomia. Tradicionalmente, nos enxergamos como sujeitos e as coisas ao nosso redor são objetos. Mas há outra maneira de entender isso. De repente, as fronteiras são mais porosas. De repente, há mais integração se pensarmos, por exemplo, no nosso corpo, no ar que respiramos, nos átomos de oxigênio, na produção energética das árvores etc. Sujeito e objeto, interno e externo, são abstrações necessárias para o dia a dia, mas não confundamos abstração com realidade. A comida que comemos, por exemplo. O que comemos ontem se torna parte de nosso corpo hoje. O que era um peixe ontem agora faz parte do nosso cérebro e nos ajuda a ler este texto. O que chamamos de “peixe” e “ser humano” é, sob uma perspectiva, entidades reais de matéria, mas, sob outra, são entidades biológicas temporárias que podem se transformar em diferentes entidades e seres.
Mais perto do fim de sua carreira, Lygia Clark fez trabalhos mais efêmeros, focando em performances coletivas e convidando participantes e audiência a adotar um olhar coletivo e a buscar uma percepção visual para além do que é habitual. Nesse olhar, não há distinção clara entre ser e atuar no mundo, entre seres humanos e meio ambiente. Clark deliberadamente não buscava por uma ordem, sim por um diálogo e por uma cura entre diferentes entidades. Para ela, a nossa identidade não era estática. Não são seus pensamentos e valores que definem quem você é, mas sim os processos pelos quais você se engaja com o mundo. E isso nos leva a lembrar de que é preciso agir com liberdade, e liberdade é quebrar os processos automatizados do dia a dia.
Esses conceitos me levam a pensar nas ontologias e pensamentos indígenas do Brasil, o que me faz citar outra grande influência brasileira para mim, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Ele lembra que a cultura brasileira traz o encontro da cultura indígena com a europeia, e, embora uma delas sempre pareça “vitoriosa”, elas sempre se encostam, se roçam, e deixam marcas uma na outra.