Por Gabriela Lemos, especial para a SP Escola de Teatro
O Peso do Pássaro Morto, da escritora Aline Bei, é um livro cortante, que fez doer as minhas próprias feridas. Machuca como poucas obras fazem. Acompanhar a trajetória de tristezas e frustrações da narradora-protagonista é catártico – por isso, quando eu digo que o livro machuca, quero dizer no melhor sentido. A menina de oito anos que nos recebe no início da leitura, doce e curiosa, encheu meus olhos de lágrimas. Mais tarde, essas mesmas lágrimas escorreram caudalosas, ao conhecer a mulher em quem ela se tornou, frustrada e resignada. Pra mim, a potência do livro está em narrar a tristeza sem fim de quem foi perdendo a doçura a cada movimento do tempo, alguém que não recebeu uma mão boa sequer ao longo dos anos e não teve outra escolha a não ser endurecer.
A encenação, dirigida por Nelson Baskerville, apresentada em uma sala do Zoom dentro do Festival Satyrianas, me fez pensar que talvez a obra também tenha sido uma poderosa catarse para Helena Cerello, a atriz que presentifica a personagem literária. Talvez tenha sido tão forte que se fez necessário sair do papel, colocar no corpo a angústia sentida, concretizar uma experiência tão poderosa e abrir pra quem mais quisesse participar. No entanto, como cada um lê uma obra a partir do seu lugar no mundo, entendo que eu e Helena tivemos experiências diferentes.
Não reconheci na mulher de vestido branco e esvoaçante, com uma coroa de flores na cabeça, a outra triste e sozinha do livro de Aline Bei. A trama, que originalmente se passa em São Paulo, aqui foi transplantada para uma paisagem bucólica, com fogueira no chão e cheiro de mato. Por que? A minha leitura teve cheiro de cidade, de concreto, do ônibus cheio, daquela esquina em que sobe o odor do esgoto e a gente se acostuma a respirar pela boca quando passa. Se havia uma mensagem, uma reflexão ou simbologia, por trás dessas escolhas e desse distanciamento do tom da obra, eu não entendi.
Reconheço a paixão da atriz que sola e se entrega em um diálogo com o público virtual. Escancara suas feições na tela e realmente nos mostra o tanto que a leitura foi sentida, o tamanho do impacto da narrativa em quem a lê. Contudo, senti falta do fardo dos anos na atuação, que se acumulam e se tornam cada vez mais afiados no livro, derrotando a protagonista aos poucos e até o fim. No Zoom, eu vi uma leitora atravessada por uma história, desejando exorcizar a angústia que prendeu aqui no meu peito também, adaptando-a à paisagem rústica de um sítio onde ela talvez tenha ido passar a quarentena. E isso é bonito.
De alguma forma, é uma outra história. A da própria atriz, embebida da sua personalidade, suas cores, visão de mundo, olhar de ninfa, poesia e coroa de flores na cabeça. Ainda assim, sendo lido de um lugar do mundo diferente do meu, vejo que a tristeza soturna da mulher do livro é capaz de movimentar. Vejo que são muitos os pesos possíveis de um mesmo pássaro morto.
Por isso, contento-me com a possibilidade de, mesmo em um ano como esse, cheio de restrições, criar e concretizar catarses por meio do teatro (ou desse formato novo que experimentamos enquanto o teatro, como o conhecíamos, não pode voltar), e poder dividir isso com uma plateia de pensamentos e entendimentos diversos. O Peso do Pássaro Morto de Aline Bei tem carne suficiente para ser sentido, chorado, lido e interpretado a partir de muitos lugares do mundo.
* Gabriela Lemos é participante da oficina olhares: poéticas críticas digitais, oferecida pela SP Escola de Teatro e ministrada pelo crítico Amilton de Azevedo, que supervisiona a produção e edita o material resultante.