Extraído do livro “Tonico Pereira: um ator improvável”, de Eliana Bueno-Ribeiro, para a Coleção Aplauso da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, de 2010 (Leia a obra, na íntegra)
O Homem que Dança
Naquele domingo no final dos anos 1960, o Grupo Escolar Adino Xavier, no Alcântara, São Gonçalo, organizava uma operação para angariar fundos. As bravas professoras deviam levar seus parentes e amigos para almoçar na escola. Reclamávamos um pouco contra o trabalho não remunerado, mas naquela época ninguém teria coragem de não cumprir o que considerávamos um dever cívico.
Do Grupo Laboratório de Teatro da Universidade Federal Fluminense, Antonio Carlos Pereira fora o único a aceitar meu convite. E, assim, às 11h da manhã lá estavámos, minha família, ele e eu, na fila do angu à baiana que fervia no panelão. Meu pai fez questão de convidar meu amigo e comprou tíquetes para todos. Antonio Carlos comeu o primeiro prato, achou muito bom e quis repetir. Meu pai prontamente comprou outro tíquete. Era junho, fazia o frio que pode fazer no Alcântara. Antonio Carlos, a essa altura magrinho e com vasta cabeleira, tossia desesperadamente. E comeu outro prato de angu. E outro. E outro. Meu pai, impressionado por sua tosse, sua magreza e aquele apetite inesperado, o incentivava: Come outro, meu filho. E para nós: É no que dá um rapaz dessa idade deixar a família pra ir morar noutra cidade, sozinho, numa pensão. Essa tosse… Ao longo do tempo, a cada vez que meu pai contava, rindo de seu próprio exagero, o que virou um causo de seu repertório, o número de pratos de angu comidos por meu amigo-estrela ia crescendo. Na época da novela O Espigão eram oito e quando o Sítio do Pica-Pau Amarelo estourou já eram 12. Antonio Carlos ia virando o incrível rapaz que comera 24 pratos de angu no espaço de duas horas… enquanto meu pai colecionava carinhosamente tudo o que se publicava sobre ele.
Durante muito tempo só nos vimos esporadicamente. Um dia, nos encontramos no meio da rua. Ele estava vendendo seu apartamento na Gávea, eu procurava um apartamento para comprar. Quem sabe? Fui visitar seu imóvel e fiquei impressionada com a organizaçao de seu arquivo. O negócio imobiliário não saiu, mas combinamos que eu escreveria sua biografia. Começamos a pensar no assunto, a juntar material, a conversar com os velhos amigos. Imara Reis, com sua proverbial generosidade, apresentou o projeto a Rubens Ewald Filho, que o inseriu na Coleção Aplauso.
Ao escrever esta autobiografia não autorizada descobri um profissional meticuloso e organizadíssimo convivendo com o anárquico e já genial Antonio Carlos dos tempos do Laboratório. Tonico não desmarca entrevista e telefona para prevenir um atraso de 15 minutos. Sua memória é seletiva e prismática: se não se lembra com detalhes de determinado acontecimento pode referir-se várias vezes a um mesmo episódio de modo a destacar, em cada versão, determinado elemento.
Descobri também um artista reflexivo, preocupado com questões teóricas concernentes ao trabalho do ator e ao mesmo tempo com o aspecto profissional de sua arte. Um homem maduro que relê sua vida de tal modo que seus aspectos pessoais e profissionais formam uma unidade. Um homem grato e generoso, preocupado com a memória e com a transmissão de seu ofício.
Mais que tudo Tonico parece temer ser levado a sério demais, levar-se a sério demais. Assim, sistematicamente, trata de quebrar com uma brincadeira, um termo chulo, uma história, uma piada de um mau gosto meticulosamente trabalhada, todo e qualquer discurso que possa soar mais solene. Como Dionísio dançarino, circula entre diferentes sentimentos e emoções, entre diversas culturas e diferentes níveis de língua com a leveza dos saltimbancos que tanto admira, dizendo sempre sim à vida.
Aglutinador, em torno de sua história nos reencontramos, amigos que não nos víamos há tempos, e celebramos o teatro, a vida e a amizade, na qual buscamos apoio para encarar o eterno movimento do mundo e nele aprender a dançar.
Foi um grande prazer dar forma a esta autobiografia não autorizada e para sua consecução contei com a colaboração de muitos amigos. Thaia Campos amorosamente transcreveu as entrevistas e escaneou todo o arquivo fotográfico de Tonico para que escolhêssemos as fotos; Imara Reis, além do contato inicial com Rubens Ewald Filho, ofereceu-me várias sugestões quanto ao desenvolvimento das entrevistas; Elias Francioni e Sandra Delgado cederam os direitos de suas fotos; Suely e Fernando Gualda Pereira, Maria Luiza Coimbra e Ronaldo Florentino me ajudaram com suas lembranças a recompor os tempos do grupo Laboratório; Leila Pereira e, de novo, Fernando Gualda dirimiram minhas dúvidas linguísticas; Izabel Cruz leu os originais e em muito contribuiu para sua primeira revisão. Marina Salomon, com paciência e amor infinitos, escaneou fotos e textos manuscritos em resolução profissional e muito colaborou na escolha das fotos e na finalização do projeto, fazendo uma preciosa última leitura dos originais; Ana Lucena me ajudou a levantar a obra de Tonico e me apoiou constantemente com sua crítica e sua amizade. A todos agradeço muito.
Ronaldo Graça me obrigou a trabalhar quando isso parecia impossível, seu pensamento guiou o meu em mais de uma passagem e sua força amparou minha fraqueza. Este livro não é apenas dedicado a ele. É dele também.