Introdução do livro “Sensibilidade e paixão”, de Vilmar Ledesma, para a Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial (leia a obra na íntegra)
Miriam Mehler é uma mulher de teatro e teve de lutar muito para seguir o caminho que escolheu e se tornar uma das grandes atrizes brasileiras. Nascida em uma abastada família judia, o primeiro obstáculo foi a oposição do pai, que a queria advogada. Decidida, foi em frente e não hesitou em trocar a toga pelos palcos, numa época em que ser atriz era praticamente um pecado para uma mocinha de boa família. O pai virou fã, vieram outras batalhas e Miriam nunca se curvou. Hoje, com 46 anos de carreira, segue apaixonada por sua profissão. E não só por sua profissão, pois ela é daquelas criaturas raras que faz da paixão o motor de sua existência. E a paixão, como escreveu Lya Luft, “é uma coisa para poucos. Ela exige alguma audácia ou alguma loucura”. Miriam sempre gostou muito de gente e a vontade de conhecer o ser humano melhor a levou ao teatro.
Dia desses, Miriam foi parada no supermercado por uma fã que lhe relembrou, emocionada, as fadas que ela representava no Teatrinho Trol, programa infantil da TV do começo dos anos 60. Tem também aqueles que não esquecem de Ângela, a mocinha sofrida de Redenção, a mais longa das telenovelas. Mas o coração da atriz e produtora bate mais forte quando vêm lhe falar de alguma das mais de 50 peças que ela encenou.
Miriam é uma espécie de dicionário do teatro paulista. A constatação é de William Pereira, que a dirigiu em dois espetáculos recentes, e nada tem de exagero. São 46 anos de carreira e mais de 50 peças, e os verbetes dessa trajetória começam em 1958, quando, recém-formada na Escola de Arte Dramática, a jovem Miriam estreou – e com o pé direito – em Eles não Usam Black-Tie, antológica montagem do Teatro de Arena. Da letra A de Arena, ela foi para o T de Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e depois para o O de Oficina, em espetáculos históricos como Pequenos Burgueses e Andorra. Bem no finalzinho dos anos 60, vem o P de Paiol, o teatro que ela fundou com o então marido Perry Salles e que tocou por 12 anos palco de montagens inesquecíveis, como Abelardo e Heloisa. Para essa relação não ficar extensa, voltemos para a letra A, de Autores: Arthur Miller, Tennessee Williams, Ionesco, Gorki, Brecht, Henry James, Noel Coward são alguns dos estrangeiros em seu currículo, e nos nacionais tem Gianfrancesco Guarnieri, Jorge Andrade, Plínio Marcos, Nelson Rodrigues, Oduvaldo Vianna Filho e Consuelo de Castro, lançada por ela. É ou não é um dicionário de teatro essa Miriam?
Depois de algumas conversas por telefone, as entrevistas para esse livro começaram na metade do mês de julho de 2004, inverno bem rigoroso para os padrões paulistanos. Foram quatro sessões e todas no apartamento de Miriam, numa agradável rua do bairro paulistano do Itaim. Só a conhecia do palco e de uma entrevista em 1990, quando ela e uma turma de companheiros do Oficina fizeram uma remontagem de Pequenos Burgueses. Nossos encontros seguiram um roteiro semelhante: começavam no finalzinho da tarde – diante de um bule de chá ou café e biscoitinhos – e o sinal para o término sempre vinha do clique do gravador anunciando que estávamos conversando fazia duas horas e que a fita acabara. Miriam é um papo delicioso, fala pausadamente – quente e rouco, o tom de sua voz é marca registrada – gesticula muito e tem sempre um comentário espirituoso, uma história deliciosa que conta como se não fosse com ela que tivesse ocorrido. Emotiva sim, mas não de ficar derramando lágrimas, mesmo quando vêm à tona episódios dolorosos, como a morte do filho único, aos 21 anos, em um acidente de carro.
Começamos a trabalhar no livro logo que ela voltou de uma viagem aos Estados Unidos e tinha alguns dias de folga antes de começar a gravar a novela A Escrava Isaura. No primeiro dia, ela me municiou com antigos álbuns de recorte e também colocou em minhas mãos praticamente todos os programas das peças em que trabalhou. Esse material foi precioso para elucidar alguns detalhes e datas, coisas que a memória nem sempre guarda. Assim que encerramos as entrevistas, fomos separar as fotos que ela guarda em pastas e envelopes no escritório de sua casa. Foi uma delícia essa seleção e, diante dos muitos retratos, surgiram várias novas histórias.
Este livro ficou pronto no final de setembro, quando Miriam estava ocupadíssima e às voltas com páginas e páginas de texto de sua nova personagem televisiva para decorar. Assim que tivesse uma brecha nas gravações, leríamos juntos os originais, o que de fato aconteceu em dois encontros. Sempre atenciosa, Miriam acrescentou detalhes e elucidou pontos que não tinham ficado claros.
Miriam Mehler completou 69 anos em setembro, mas como só costuma acontecer com alguns escolhidos, basta olhar em seus olhos castanhos e transparentes para perceber um brilho de menina inquieta que o passar dos anos se encarregou de ressaltar. Nas próximas páginas, está a história dessa batalhadora, uma autêntica mulher de teatro, a quem os palcos brasileiros devem muito.