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Bravíssimo | Marcio Aurelio por Aguinaldo Cristofani Ribeiro da Cunha

Publicado em: 14/08/2014 |

Introdução do livro “O que estava atrás da cortina?”, de Aguinaldo Cristofani Ribeiro da Cunha, para a Coleção Aplauso da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (para ler a obra, na íntegra, clique aqui)

 

 

Este livro começou a ser escrito em novembro de 2004. Depois de muitas paradas motivadas por compromissos profissionais – tanto de Marcio Aurelio, um diretor de teatro incansável, com pauta cheia o ano inteiro, quanto meus – e frequentes retomadas, finalmente o concluímos, agora, em julho de 2010!

 

Indicado para escrever o livro por dois amigos, Alcides Nogueira (querido colega da Academia de Direito do Largo de São Francisco, as gloriosas Arcadas, na década de 1970) e Tuna Dwek (companheira de longa data, sempre presente, afetiva, generosa, a querida madrinha deste livro), entusiasmado com a perspectiva de trabalhar com alguém como Marcio Aurelio, cujo trabalho no teatro brasileiro admiro desde os anos 1970, aceitei de pronto o convite da coordenação da Coleção Aplauso (coleção maravilhosa, registro marcante das artes e da cultura brasileiras, a qual recebeu o Troféu APCA em 2009, homenagem expressiva da Associação Paulista de Críticos de Arte à Imprensa Oficial e à essa formidável coleção de memória artística).

 

Se acompanhava de longe o trabalho de Marcio Aurelio (desde, na verdade, a montagem de Tietê, Tietê, em 1979), fui conhecê-lo pessoalmente somente em 2001, durante a temporada de Édipo Rei, uma das marcantes montagens da Companhia Razões Inversas,no Teatro Brasileiro de Comédia. Mas um relacionamento mais próximo entre nós só teria início com a estreia de Pólvora e Poesia, no Centro Cultural Branco do Brasil, em São Paulo. Temporada de sucesso, público e crítica prestigiando a parceria (mais uma! parceria famosa no teatro brasileiro) de Alcides e Marcio – texto impecável, espetáculo de primeira qualidade. Ficamos próximos, então. Afinal tínhamos trabalhos paralelos, ele no palco, eu na crítica, mas ainda não amigos. A amizade, que reforçou de minha parte a antiga admiração, veio com este livro.

 

Iniciado o trabalho, Marcio Aurelio e eu passamos a nos encontrar no belo e amplo apartamento que ele tem na Avenida Angélica, em São Paulo, com frente para a Praça Buenos Aires, a fim de trocarmos ideias sobre como seria este livro. Definidos os passos a serem dados, definida a forma, vieram os depoimentos, as conversas. Quanto assunto!!!

 

Tardes de muita conversa, lembranças, a memória rebuscando o passado. Que belo depoimento o de Marcio Aurelio! Depoimento que abrangeu os primeiros 20 anos de vida dele e o início de sua trajetória artística na Capital paulista. Depoimento misturado com conversas paralelas, uma vez que somos da mesma geração: lembranças parecidas, próximas, do teatro brasileiro do final dos anos 1960 e início dos 1970. 

 

Origens também semelhantes, os portugueses e os italianos ancestrais, no interior paulista, ele, de Piraju, eu de São José do Rio Pardo, com sua lindas histórias que marcaram nossas vidas. 

 

Até mesmo um sobrenome comum compartilhamos, o Sartori (da avó materna de Marcio e de uma de minhas bisavós maternas, com antiquíssimas raízes na Lombardia, mais exatamente na província de Mântua, comunas de Viadana, Sabbioneta, Menzzano e Villa Pasquali).

 

Marcio, de depoente, em breve passou a escrever, ele mesmo, sua trajetória, mostrando-me a evolução de seu trabalho artístico, etapa por etapa. Preferiu a escrita à fala, à gravação. Essa metodologia permitiu-me trabalhar num texto muito fluente, em tom coloquial. Aliás, regra sempre seguida nos livros da Coleção Aplauso. 

 

Esses depoimentos, conversas e leituras foram completados pelo fascinante trabalho de seleção de fotos dos espetáculos de Marcio – na pluralidade de sua atuação como diretor, cenógrafo, figurinista, maquiador, iluminador, autor, adaptador, dramaturgista. 

 

A foto dava realidade visual às lembranças e à escrita de Marcio sobre o teatro autoral que desenvolveu e desenvolve, brilhantemente, no teatro brasileiro desde meados da década de 1970 até nossos dias. 

 

O teatro paulista das três últimas décadas surgiu, nítido, à minha frente, conforme Marcio fazia seu depoimento. Teatro que eu também vi, parte indelével de minhas próprias lembranças. 

 

Lembro-me perfeitamente das duas montagens de Os Farsantes: Tietê, Tietê e O Filho do Carcará. Os dois espetáculos diziam muito, na época, para minha geração: a Semana de Arte Moderna e os anos 1970 no palco, textos, direção e interpretação feitos por pessoas da mesma faixa etária, com uma mesma visão do mundo e da arte. Meu amigo o ator João Carlos Couto, dos tempos de faculdade (ele na Sociologia e Política e eu na São Francisco), trabalhava nas duas peças e eu ia vê-lo (de resto, via muito teatro, influência de meus pais, especialmente minha mãe, e de minha prima, a atriz Myriam Muniz). O impacto dos dois espetáculos era forte, marcante. Foram os primeiros trabalhos que vi de Marcio e Alcides. 

 

Mais tarde, dois espetáculos inesquecíveis foram O Pássaro do Poente e Eras-Filoctete/Horácio/Mauser, protagonizados por Paulo Yutaka e Celso Frateschi, respectivamente. A beleza visual do primeiro, que vi no Rio de Janeiro, magnetizava a plateia. O segundo trazia conceitos novos, estética teatral original e instigante. 

 

Na segunda metade da década de 1990, em minha atuação como crítico, pude acompanhar mais de perto o trabalho de pesquisa de linguagem, altamente inovador, da Companhia Razões Inversas. Ao comentar Torquato Tasso, de Goethe, em agosto de 1995, primeira montagem da nova companhia a que assisti, fiz um breve histórico do grupo e assinalei que Marcio Aurelio concebeu um espetáculo de forte impacto visual: limpo, claro e elegante. O cenário e a iluminação, também assinados por ele, e os figurinos de Leda Senise compõem um conjunto esteticamente bonito. O rigor interpretativo é seguido por todo o elenco, formado por Carla Hossri, João Carlos Andreazza, Luah Guimarães, Marcelo Lazzaratto e Paulo Marcello.

 

No mesmo ano, 1995, em setembro, vi uma montagem muito poética e delicada, dirigida por Marcio Aurelio em paralelo às suas atividades na Companhia Razões Inversas: O Beijo, adaptação de um episódio de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust (na verdade, adaptação do primeiro capítulo de No Caminho de Swann) feita pela atriz Ariclê Perez, que também o interpretava. Impressionou-me a atuação da atriz e o tratamento poético dado ao espetáculo por Marcio Aurelio. 

 

Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso trouxe-nos de volta, em março de 1996, a parceria Alcides Nogueira/Marcio Aurelio (direção assinada em conjunto com Antonio Abujamra). Texto saboroso, direção impecável, atuações precisas de Nicette Bruno, Clarisse Abujamra e Francarlos Reis. No ano seguinte, em julho de 1997, a Companhia Razões Inversas volta em grande estilo, com Senhorita Else, adaptação do texto de Arthur Schnitzler feita por Marcio Aurelio, Paulo Marcello, Débora Duboc e Marcelo Lazzaratto. Fascinante nesse espetáculo era observar a línguagem teatral trabalhada com total competência e habilidade pelo diretor e pelos atores – entre eles, Débora Duboc, Paulo Marcello, Eucir de Souza, Newton Moreno, Marcelo Lazzaratto, Carol Badra e Pepita Prata. 

 

Ao mesmo tempo, Marcio Aurelio estava em cartaz, nesse ano de 1997, no Teatro Maria Della Costa, com Algo em comum, de Harvey Fierstein, quando criou um espetáculo de muita emoção e sensibilidade. Montagem que mexia com o público, interpretações de alto nível dos protagonistas, Clarisse Abujamra e Petrônio Gontijo, belo cenário de Renato Scripilitti e belos figurinos de Leda Senise.

 

Em agosto de 1998, ao comentar Maligno Baal, de Brecht, fiz questão de ressaltar que a Companhia Razões Inversas desde 1990 mantém um trabalho de pesquisa cênica que prima pelo rigor e pela seriedade. O espetáculo interage totalmente com o público e apresenta-nos um belo trabalho do grupo em sua permanente pesquisa de linguagem – sempre o traço primeiro e mais importante, talvez, das montagens da companhia. Destacava a seguir a qualidade dos intérpretes (Fernando Neves, Carol Badra, Pepita Prata, Paulo Marcello, Marcelo Andrade, Marcelo Lazzaratto e Eucir de Souza) e concluía com a afirmação de que é um prazer acompanhar a trajetória de Baal, esse maligno ser associal, na versão de Marcio Aurelio, com crítica veemente ao comportamento do personagem (à parte ideologias) e estética apurada, resultado de amadurecimento da proposta de trabalho da companhia. 

 

Em Maligno Baal, aliás, Marcio não era apenas o diretor, mas também o autor do cenário, figurino, iluminação e trilha sonora, tendo criado um espaço altamente original onde se desenrolava a ação. 

 

Na Arte da Comédia, de Edoardo De Filippo, em setembro de 1999, ressaltei que o espetáculo dirigido por Marcio Aurelio é exemplar em sua fidelidade ao espírito do texto teatral, trabalhando com requinte as sutilezas de interpretação e as possibilidades que ela oferece… Marcio Aurelio, além de diretor, é o responsável pela tradução e adaptação, bem como pelo belo e funcional cenário, pelo figurino, de muito bom gosto, e pela iluminação….O trabalho coletivo revela a elevada qualidade dos intérpretes e o apuradíssimo desempenho da maioria deles. 

 

Em julho de 2001, novamente juntos, Marcio Aurelio e Alcides Nogueira nos trazem um espetáculo belíssimo e de elevada categoria, em todos os aspectos: Pólvora e Poesia, no qual Verlaine e Rimbaud são colocados em cena com maestria – pelo autor, pelo diretor e pelos sensíveis desempenhos de João Vitti e Leopoldo Pacheco (não podendo ser esquecida a engenhosa cenografia de Gabriel Vilela e o ótimo pianista Fernando Esteves). Sem medo de parecer repetitivo, assinalei que Marcio Aurelio é um diretor sempre criativo e rigoroso. Vi várias vezes esse espetáculo, aliás, premiadíssimo. 

 

Em 2002, Marcio Aurelio nos apresenta uma montagem instigante, Souvenir, texto de Fernando Bonassi e Victor Navas, com interpretações muito bem realizadas de Leopoldo Pacheco, João Vitti e Malu Bierrenbach. Espetáculo propositalmente frio e distanciado, com a emoção acertadamente em segundo plano, apesar de discutir a paixão, a relação amorosa. 

 

Retirando-me da crítica semanal na imprensa em novembro de 2003, continuei por alguns anos a escrever na internet – somente sobre as peças que gostava, que me entusiasmavam. Que impacto foi ver Agreste, numa fria noite de sábado, no Teatro Cacilda Becker! Talvez um dos melhores espetáculos que jamais vi, tendo Marcio valorizado ao extremo o belo texto de Newton Moreno. Criatividade, originalidade. Atuações magníficas de Joca Andreazza e de Paulo Marcello. No final do espetáculo, não conseguia conter meu entusiasmo, em conversa na porta do teatro com Joca, Paulo e Tuna Dwek. 

 

O auge, talvez, da Companhia Razões Inversas, até aquele momento. Digo talvez e até aquele momento porque, em 2009, esse trio fabuloso (Marcio, Paulo e Joca) nos apresentou nada menos que Anatomia Frozen, um espetáculo, poético, sensível, impactante como tantos outros que esses artistas criativos nos apresentaram anteriormente. Tudo indica que temos ainda a esperar muitos outros belos e importantes espetáculos da Companhia Razões Inversas! 

 

Nesta década de 2000, a quantos outros belos espetáculos de Marcio Aurelio tive a felicidade de assistir, como Galvez, Imperador do Acre e Chalaça, produções da nova Companhia Les Commediens Tropicales; Nove Partes do Desejo, inteligente criação de Clarisse Abujamra; Pequenos Crimes Conjugais, produção da querida amiga Lulu Librandi, com ótimos desempenhos de Petrônio Gontijo e Maria Fernanda Cândido; Os Lusíadas, magnífica reconstitução da epopeia portuguesa, produção de Ruth Escobar, essa figura importante e fundamental do teatro brasileiro na segunda metade do século XX, que em boa hora trouxe aos palcos a obra de Camões; Metafísica do Amor, belíssimo espetáculo com Marilena Ansaldi e Paulo Marcello (produção da Companhia Razões Inversas); Digníssimo Filho da Mãe, divertido e inteligente texto de Leilah Assumpção, com boas interpretações de Miriam Mehler e Jair Mattos; Restos, montagem impecável, com atuação marcante de Antonio Fagundes. 

 

Ao trabalhar com Marcio Aurelio na elaboração deste livro, as memórias teatrais ficaram vivas, presentes! Lendo seu depoimento, percebemos a personalidade fascinante de Marcio, completa como em tudo que faz. 

 

Nos meus trabalhos sobre teatro tenho, sempre, como inspiração, três pessoas maravilhosas, Cleyde Yáconis, Maria Thereza Vargas e a saudosa e querida Myriam Muniz. Acho, portanto, justo citá-las aqui. 

 

Lembro, ainda, minha prima Myrian Cristofani (minha amiga e de Marcio) e meus amigos Edvard Barreto, Samuca Oliveira e João Lucílio Albuquerque, sempre presentes. 

 

Marcio Aurelio, como profissional de teatro, em suas múltiplas facetas, tem uma singularidade que o distingue no panorama do teatro brasileiro contemporâneo. Não se assemelha a nenhum outro diretor teatral – seu teatro tem sua marca, marca de originalidade e de resultado de pesquisa séria, que evoluiu ao longo dos anos até tornar-se, hoje, um teatro autoral com estética e expressão inconfundíveis.

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