Apresentação do livro “O cão e a rosa”, de Rogério Menezes, para a Coleção Aplauso da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (Leia a obra na íntegra)
Ao final de doze exaustivas horas de entrevistas realizadas na primeira semana de junho de 2004 em aconchegante apartamento da Rua Décio Villares, no bucólico Bairro Peixoto, milagrosamente encravado na caótica e nem sempre aconchegante Copacabana, no Rio de Janeiro, este jornalista-escritor chegou ao seguinte diagnóstico sobre a personagem que entrevistara:
Sete (ou mais) em uma. Parodiando o título de minissérie em que atuou na Rede Globo em 2003 (A Casa das Sete Mulheres), poderíamos rotulá-la de a toca das sete (ou mais) mulheres. Assim é (ou são?) Bete Mendes. Nela, nessa toca, se ocultam (e se revelam):
A guerrilheira, a atriz, a torturada, a deputada, a reivindicadora, a apaixonada (pelos homens e pela cultura que produzem) e a supermãe (que é, aliás, sem nunca ter sido).
Bete Mendes não teve filhos. Mas, mesmo sem querer, mesmo sem perceber, acabou canalizando esse sentimento-maternal-não-utilizado para as pessoas com quem convive, o que a torna sempre protetora e sempre zelosa com todos que a cercam. Com os amigos. Com o marido Marco Antonio Fernandes Marques. Com o pequeno ator ou com a atriz iniciante com quem contracena. Com o porteiro do prédio. Com o lixeiro da rua onde mora, que a cumprimenta, sempre risonho e franco. Com este jornalista-escritor a quem nunca mais viu mais gordo, mas a quem tratou quase como se fosse alguém da família. Enfim, na medida do possível, com o resto da humanidade.
Essa mulher, digamos, multifuncional, é, antes, de tudo, intensa. Nenhum adjetivo poderá defini-la melhor. Mergulha em tudo com muita paixão. Sem meios-tons. Sem defesas. Sem pejo. Sem medo. Como aquela trapezista que dispensa redes de proteção por mais complicadas que sejam as evoluções que fará no céu do circo. Foi assim, sempre corajosa, que a atriz Bete Mendes se comportou nas entrevistas que concedeu a este jornalista-escritor para a realização deste livro. Não à toa, ao final da primeira entrevista-maratona se queixou de dor de cabeça e ao final das entrevistas seguintes revelou-se muito cansada. Ou melhor, ao estilo sempre superlativo de Bete Mendes, cansadíssima.
Quase todos os adjetivos que Bete Mendes utiliza ao falar são no superlativo. Para ela, não basta dizer lindo quando quer exaltar a beleza de uma pessoa, de uma paisagem, ou de um sentimento. Nesses casos a palavra certa será lindíssimo. Ao enfatizar alguma palavra ou frase, costuma repeti-la três vezes seguidas, como um personalíssimo mantra. Não bastará dizer chorei. Dirá sempre: chorei, chorei, chorei.
Por falar em chorar, Bete Mendes é choroníssima. Foram várias as vezes que as entrevistas tiveram de ser interrompidas para que a atriz pudesse chorar. Esse choro fácil e incontido eventualmente a constrangeu e lhe motivou a pedir desculpas a este jornalista-escritor. Sem necessidade alguma. Chorar enobrece o homem. É, a essa altura do apocalipse, uma das poucas coisas que nos fazem diferentes do resto da matilha (até prova em contrário, o homem é o único animal que chora).
Bete Mendes chora muito, mas também ri muito (outra coisa que nos faz diferentes do resto da matilha; até prova em contrário, o homem é o único animal que ri). Vai do choro convulsivo ao riso retumbante, com a velocidade de um corredor olímpico, numa mesma página, num mesmo capítulo, numa mesma cena, num mesmo quadro, num mesmo take. Isso, esse ir-e-vir constante entre o choro e o pranto, entre o quente e o frio, entre a água e o fogo, entre Deus e o diabo, a torna personagem dramático fascinante (Quem leu O Vermelho e o Negro, de Stendahl, sabe: o protagonista Julien Sorel é feito com esse mesmo, e volátil, barro).
Não poderia ser de outra forma. Esse personagem fascinante reflete a vida fascinante que a atriz (a mulher que entre as muitas outras que habitam essa toca acabou de alguma forma prevalecendo, embora todas as outras possam ser, e são, eventualmente conclamadas) teve (e tem). Não será qualquer escritor vagabundo que criará personagem capaz de, ao mesmo tempo, ser a protagonista de uma novela de sucesso vista por milhões Brasil afora (Beto Rockfeller, em 1968) e a militante comunista que, com o nome de guerra Rosa (por causa de Rosa Luxemburgo), vivia na clandestinidade. Ou que precisaria abandonar no meio puerilíssima novela (Simplesmente Maria, 1970) porque ficaria presa por um mês nos porões da ditadura militar, sofrendo torturas tão horrendas que até hoje nenhuma das muitas mulheres que habitam a toca betemendesiana se dispôs a revelar detalhes desse momento de absoluto inferno pessoal.
Sabe, caro leitor, aquela história de que a minha, ou a sua, vida daria um romance? O romance em torno da vida de Bete Mendes, como o leitor poderá perceber nas páginas a seguir, é um clássico. Nele se misturam ódios, paixões, angústias, reviravoltas, medos, coragens e, basicamente, muitas chances de refletir sobre o sentido da vida e sobre a condição humana (algo que todos os grandes clássicos da nossa grande literatura almejam englobar).
Em vários momentos das entrevistas, Bete Mendes admitiu que nunca foi mulher fácil de ser, digamos, engolida, digerida pelo status quo vigente. Sempre ao fim de cada recordação, que dava conta do quanto foi rebelde e fora dos padrões femininos de antanho, afirmava: Eu era um cão àquela época.
Resumo da ópera: Deus (ou quem de direito), o cara que arquitetou toda essa trama, eventualmente rocambolesca mas sempre arrebatadora, que marca a vida de Bete Mendes, estava em momento inspiradíssimo quando a criou.
O que me levou, quando dei ponto final na edição deste livro-depoimento, a levantar-me da poltrona, como se faz ao final das récitas de grande dramaturgia, aplaudir entusiasticamente, e bradar: O autor, o autor!
PS: Por falar em autor, o autor de novelas Dias Gomes registrou para a posteridade essa intensidade, essa rebeldia, da atriz Bete Mendes. Depois de atuar em Sinal de Alerta, a atriz ganhou do novelista o seguinte texto:
Nenhuma emoção é mais gratificante para um autor do que ver uma personagem crescer, ganhar força e determinação própria e rebelar-se contra o destino que lhe traçamos. Voltar-se contra o seu criador e dizer-lhe: Olha, não aceito o que você vai fazer comigo, exijo que você me trate como mereço. E aí? Aí o autor nada mais pode fazer do que dobrar-se, humildemente, à exigência da personagem, e deixar-se conduzir por ela, dando-lhe a importância que ela lhe provou ter e o destino que ela exigiu para si mesma. Isto me aconteceu algumas vezes. Nunca, porém, de maneira tão eloqüente quanto na novela Sinal de Alerta, com Vera Bastos, personagem interpretado por Bete Mendes. Graças à verdade uterina com que Bete viveu este papel, confesso que de um momento em diante minha imaginação começou a ser guiada pela atriz, pelo que ela me sugeria em termos de interpretação, abrindo-me caminhos pelos quais eu era obrigado a conduzi-la, transformando-me assim, de autor, em mero escrivão a registrar o que me ditava a personagem. E nada de humilhante. Ao contrário, todo autor verdadeiro anseia por isso, ser envolvido e ser dominado pelas personagens que criou, passar de senhor a escravo de seus desejos. No caso, devo isso ao talento de uma atriz, Bete Mendes. Talento com o qual desde então anseio voltar a me encontrar, no palco, numa tela de cinema ou tevê, em qualquer parte onde se possa repetir o milagre.