Apresentação do livro “O explorador de sensações peregrinas”, de Maria Lúcia Dahl para a Coleção Aplauso da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, de 2010 (Leia a obra, na íntegra)
Conheci o Bivar por intermédio de Maria Regina, atriz que morou com ele e o José Vicente, em São Paulo, em 1969, quando ela ensaiava a peça Hair.
Era a época da ditadura e Marcos Medeiros, meu namorado e líder estudantil, na época, depois marido e pai da minha filha, estava preso. Marcello Alencar, seu advogado, conseguiu enganar os policiais, dizendo que tinha de levá-lo a uma audiência.
Marcello ligou pra mim e pra mãe do Marcos, a Dot, dizendo pra irmos encontrar com eles na porta do tribunal. Cheguei com a Dot, ao mesmo tempo em que eles chegavam pelo outro lado. Marcello nos chamou, puxou Marcos pelo braço, e disse:
– Você está com seu passaporte aí?
Dot respondeu que estava com ela. Então Marcello puxou Marcos e disse:
– Foge!… Pega o passaporte e foge pra Argentina.
Marcos olhou pra ele, perplexo, e Marcello continuou:
– Para o primeiro ônibus que passar, vai até a rodoviária, de lá pra São Paulo e some direto pra Argentina. Anda, vai. Não se despede de ninguém.
Marcos, em estado de choque, com os cabelos pintados de negro (os dele eram louros) e o passaporte falso na mão, fez o que Marcello dizia; Dot e eu pegamos o carro e fomos rapidamente embora.
Sem querer, eu tinha juntado a fome com a vontade de comer: Marcos, um guerrilheiro que lutava contra a ditadura; Regina, completamente hippie, o que era outra forma de combater a repressão; Zé Vicente e Bivar, premiados autores de teatro absolutamente sintonizados com o espírito contestador da época, este último, autor de Cordélia Brasil, que tínhamos visto, Marcos e eu, e nos apaixonado, perdidamente, pela peça, texto, autor, atores, uma Norma Bengell sensacional, e um Luiz Jasmim no auge de sua beleza e charme.
A peça fez tanto sucesso que algumas frases viraram moda: O começo é sempre difícil, Cordélia Brasil, vamos tentar outra vez. Isso passou a ser dito a torto e a direito.
Teve críticas e comentários maravilhosos, na época, com Fausto Wolf dizendo que Bivar possuía uma força poética extraordinária e uma contundência poucas vezes vista entre os nossos autores.
Pra mim, Bivar era uma espécie de Ionesco – surpreendente, cheio de humor, nonsense, beleza e cor. O autor que necessitávamos pra definir a década singular em que vivíamos, tendo o sonho como cenário, em todos os sentidos, e uma ditadura preta e branca que tentava nos prender a uma realidade imposta pela censura, prisão, tortura, ali, debaixo das Dunas da Gal, o que acabou por nos fazer optar por outros cenários tão bonitos quanto, em suas diferenças absolutas, em busca da liberdade, nossa meta principal.
Mas, voltando à passagem do Marcos por São Paulo, conta Maria Regina:
– O Bivar tinha ganhado um vidro de ácidos (LSD) de um conjunto americano, o The Sound of San Francisco em temporada por São Paulo e mais um livro do Castañeda, The Teachings of Don Juan. Num desses dias que tínhamos tomado ácido, e já estávamos viajando, toca a campainha e era o Marcos Medeiros, com os cabelos pintados de negro tal qual Viva Zapata, além do passaporte falso, dizendo que ia pra Argentina, fugido da polícia. Enfiei-lhe um ácido goela abaixo. O Marcos achou que era Mandrix (remédio pra dormir, que se tomava pra curtir) e engoliu. Depois eu falei que era ácido, mas não tinha mais jeito e resolvemos sair pela Rua Augusta: Marcos, Zé Vicente, Bivar e eu. Paramos na porta de um cabeleireiro e quando vimos aquelas mulheres de bobs no cabelo, debaixo dos secadores, aquilo parecia uma coisa de Marte e rimos tanto que botei chiclete na boca pra parar de rir e acabei perdendo um dente que ficou pregado no chiclete, e continuei às gargalhadas, com o dente na mão!
– Depois dessa história do cabeleireiro, bobs e secadores – conta Bivar – levei o Marcos pro MASP Museu de Arte de São Paulo (MASP) e ficamos vendo O Menino Estudante do Van Gogh se mexendo na tela e comunicando seu desespero pra gente. Foi uma sensação inesquecível e lembro que Marcos também ficou muito tocado e angustiado com o sofrimento do menino amarelo do Van Gogh.
Não sei quanto tempo Marcos ficou em São Paulo. Só fui encontrá-lo, já grávida, um pouco depois, em Paris. Lá vivia a turma da política. Em Londres, a dos hippies, e, novamente, encontrei Bivar na Inglaterra, na casa do Gilberto Gil, onde ácidos, baseados e Tropicália rolavam soltos entre um grupo variado de artistas hippies, como o Jorge Mautner e a Ruth, Caetano e Dedé, Rogério Sganzerla, Helena Ignez e Júlio Bressane, que me ensinaram a palavra careta. Tudo era careta. Uma vez Helena Ignez me viu dar mamadeira pra minha filha de seis meses e gritou apavorada:
– Está dando veneno pra criança! Está dando veneno pra criança!
Quase tive um troço até saber que o veneno a que ela se referia era o leite, na época totalmente rejeitado pela macrobiótica vigente.