“Glórias a todas as lutas inglórias que através da nossa história não esquecemos jamais”. Os versos emblemáticos da canção O Mestre-Sala dos Mares, de Aldir Blanc e João Bosco, eternizada na voz da maior intérprete, Elis Regina, serve como luva à missão do espetáculo Turmalina 18-50, realização da Cia. Cerne, de São João de Meriti, na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, e integrante da programação da Mostra Aldir Blanc na SP Escola de Teatro Digital.
O foco da montagem teatral, assim como da canção-pérola da MBP, é contar para as novas gerações a história de João Cândido Felisberto (1880-1969), o Almirante Negro líder da Revolta da Chibata em 1910 e que durante as quatro décadas finais de sua vida viveu em São João de Meriti, onde morreu pobre, rechaçado pela Marinha e esquecido, apesar de seu feito heroico e histórico em prol do povo brasileiro.
Apesar de a Abolição da Escravatura ter sido decretada no Brasil em 1888, nos 22 anos seguintes o açoite continuou a ser prática de castigo nos corpos dos marinheiros negros, numa ultrajante herança escravocrata imperial em tempos de República. Foi apenas diante da Revolta da Chibata, comandada por João Cândido, com a ousadia de apontar canhões de navios de guerra para a cidade do Rio de Janeiro, que a Marinha precisou voltar atrás em tal prática desumana e covarde.
Mas, o Almirante Negro, alcunha que ganhou na época pelos jornais da então capital da República, sofreu até o fim da vida por aquele ato de coragem, tendo sido expulso das Forças Armadas e jamais sendo reintegrado à Marinha do Brasil, em uma prova da maldade do racismo estrutural e institucional que se justificou como desrespeito à hierarquia, mesmo que esta fosse profundamente racista.
Pesquisa e poesia
Todos estes dados históricos são necessários para se falar do espetáculo Turmalina 18-50, que contou com minuciosa pesquisa história de Luiz Antônio Simas, que forneceu dados e documentos que embasam o texto de Vinicius Baião, que consegue habilmente unir informações sem perder a poesia necessária do teatro. A obra ainda conta com supervisão de Rodrigo França, nome que vem fazendo nos últimos anos o orgulho negro prevalecer no teatro carioca e fluminense, em um movimento histórico de conquista do palco para artistas pretos.
Repleta de símbolos e costuras com questões que se repetem no contemporâneo, em uma eloquente realização do teatro épico proposto por Bertolt Brecht (1898-1956) pelo diretor Vinicius Baião — e sem descuidar da qualidade das atuações, o que é raro —, a obra navega nas águas turvas da vida do Almirante Negro, tendo como porto de partida o endereço em que ele viveu em São João de Meriti e dá nome ao espetáculo: rua Turmalina, Lote 18, quadra 50, evidenciando que por lá, as questões vividas por Cândido permanecem as mesmas.
Em um país desmemoriado como o Brasil, que apaga seus ícones mais importantes, sejam sociais ou culturais, um espetáculo como esse deve ser celebrado, valorizado e, sobretudo, visto. Afinal, João Cândido teve luta crucial em prol da igualdade racial que traz dignidade ao negro e, portanto, a toda a sociedade brasileira.
Foi com luta e enfrentamento que ele conquistou o fim de uma prática execrável no corpo de nossas Forças Armadas, que, por sua vez, deveriam lhe agradecer por isso, em vez de condená-lo ao banimento eterno, como se fosse um pária em vez de herói. A Marinha do Brasil deve a João Cândido e seus companheiros na Revolta da Chibata sua retirada da Idade das Trevas e tentativa de desembarque na civilização republicana e democrática ocidental.
Elenco talentoso e integrado
Entretanto, toda essa história não seria possível de ser contada de forma tão tocante se não tivesse à sua disposição um elenco coeso, feito não só de talento como de entrega verossímil à cada palavra dita ou imagem construída por este espetáculo. E aí é preciso ressaltar o trabalho de união demonstrado pelos atores em cena em torno de contar da melhor forma possível essa velha, mas infelizmente tão atual, história.
Com sua voz aveludada e postura elevada em cena, Átila Bee dá vida ao protagonista João Cândido, a quem defende com unhas e dentes, provocando no público imediata identificação. Graciana Valladares, outro destaque no palco, por sua vez, navega por personagens distintas, emprestando sagacidade na construção de cada uma delas com sua devida nuance. Madson Vilela, que completa o trio negro da peça, é intenso em suas composições, percorrendo variados personagens com grande entrega.
Rechaçando a divisão étnica e sendo sua própria escalação um exemplo de igualdade racial, completam o sexteto do elenco os atores Gabriela Estolano, Higor Nery e Leandro Fazolla, todos navegando com desenvoltura pelos personagens que ajudam no avanço da trama ou dão suporte generoso ao protagonismo negro necessário à biografia de João Cândido, em um exemplo de postura consciente e tão necessária no teatro brasileiro, para que novas matizes e significados se construam aos olhos do público. Nesta história, o ponto de vista é o negro, mas também o de todas ditas minorias pisadas pelo velho sinhozinho que teima em se repetir no poder, seja na Marinha, na TV, no teatro ou na sociedade como um todo.
Equipe em diálogo
A obra conta com cenografia dinâmica e manipulada pelos atores para criar significados, criada por Cachalote Mattos, em um exemplo cenográfico simples e funcional à estética épica adotada pela encenação. Os figurinos de Carol Barros colocam os atores e atrizes vestidos de elegantes marinheiros do começo do século 20, o que é um verdadeiro respiro de beleza em meio à crueza dos fatos apresentados.
Há que se evidenciar a presença cênica integrada e consciente dos corpos em cena, o que mostra que o preparador corporal Orlando Caldeira executou, e muito bem, o trabalho para o qual foi convidado pela Cia. Cerne. Kadú Monteiro, por sua vez, abusa da brasilidade e da sonoridade afro-brasileira na direção musical e de trilha executada ao vivo, fazendo da força ancestral da vibração sonora parte da experiência estética que atinge cada átomo dos espectadores. A produção ainda conta com a lente atenta da fotografia de Stephany Lopez e o cuidadoso registro audiovisual da Guapoz Produções Artísticas.
Como uma ponte histórica potente entre as águas da Guanabara que viram o surgimento do dragão insurgente do mar e os dias de hoje, ainda tão bravios para o povo negro, Turmalina 18-50 vem para não deixar a história se esquecer de João Cândido. E reconduz sua figura à Marinha por direito, afinal, por mais que a Censura da ditadura militar tenha trocado a letra da música de Blanc e Bosco, o bravo feiticeiro na verdade era um bravo marinheiro, e o tal do navegante negro, de fato foi e é o grande Almirante Negro da Marinha do Brasil.
Isto posto, só nos resta colocar Elis Regina na vitrola e cantar junto a plenos pulmões: “Glórias a todas as lutas inglórias que através da nossa história não esquecemos jamais. Salve, o Almirante Negro que tem por monumento as pedras pisadas no cais. Mas faz muito tempo…”
A peça Turmalina 18-50 faz sessão extra e gratuita nesta quinta, 13 de Maio, às 18h, na SP Escola de Teatro Digital. Retire seu ingresso!
*Miguel Arcanjo Prado é jornalista, crítico, curador e escritor. Mestre em Artes pela UNESP, especialista em Mídia, Informação e Cultura pela ECA-USP e bacharel em Comunicação Social pela UFMG. É diretor do Blog do Arcanjo e do Prêmio Arcanjo de Cultura. Crítico da APCA, da qual foi vice-presidente. Passou por TV Globo, Record, Folha, Abril, Band, R7, UOL, Gazeta e Notícias da TV, entre outros veículos.
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