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Alberto Guzik por Sérgio Roveri

Publicado em: 27/03/2012 |

Há algumas semanas, sonhei com o Alberto Guzik. O que não representa um fato inédito. Sonho frequentemente com ele e com algumas pessoas queridas, poucas, na verdade, que também partiram. É difícil admitir que, com o passar dos anos, eu tenho acreditado em menos coisas. E essa perda da ilusão e da inocência, antes de ser sinal de amadurecimento, se revela um fardo perene sobre os nossos ombros, um torcicolo de alma resistente a uma cartela inteira de Dorflex.

 

A vida vem se tornando um pouco menos mística e, consequentemente, um pouco menos mágica. A vida vem se tornando, enfim, simplesmente vida em estado bruto – do jeito que ela parece ser e não do jeito que nossa fantasia tenta inutilmente moldá-la. Hoje, eu acredito menos nos sonhos – não nos sonhos que se traduzem em projetos e ambições, mas no sonho literal, aquela movimentação descoordenada e incompreensível que ocupa a nossa mente enquanto tentamos descansar. Hoje, eu sou tentado a ver os sonhos bons como uma reação química do nosso cérebro, que não tem outro intuito além de driblar as nossas saudades – um sistema de autocompensação neurológica que procura nos suprir enquanto estamos de olhos fechados, de tudo aquilo que nos faz falta quando os olhos estão abertos e vigilantes.  Mas, então, veio o sonho com o Alberto Guzik, e me fez, ao menos neste caso específico, acreditar que há vida além da reação química.

 

Vamos a ele. No meu sonho, eu ainda trabalhava no Jornal da Tarde – em cuja redação eu tive o prazer de conhecer e compartilhar, durante 15 anos, da amizade e do insuperável talento crítico e conhecimento teatral do Guzik. Mas voltemos ao sonho; ele transcorreu no final de um dia de trabalho. Eu atravessava a redação em direção ao elevador e carregava muitos pesos sobre as costas (peço perdão aqui pela pobreza da simbologia, mas a situação era exatamente assim: havia malas, pacotes, embrulhos e tantas outras quinquilharias que me curvavam, literalmente, os ombros e dificultavam o caminhar). 

 

Ao chegar ao hall do elevador, me deparei com o Alberto Guzik, ali, sozinho. Eu já sabia, dentro da lógica do sonho, que ele havia partido, e daí a minha surpresa ao vê-lo tão animado, tão bonito, feliz e sorridente, tão naquele estilo que Hollywood nos ensinou a ver os mortos que estão bem. Pois era assim que ele estava. Se eu tivesse de escolher apenas uma palavra para descrever a imagem com a qual ele se revelou no hall do elevador, eu diria, sem dúvida, que ele estava leve.

 

– “Guzik!”, disse eu, incrédulo e, ao mesmo tempo, maravilhado, depositando no chão todos aqueles pacotes que estavam sobre as costas. “Como você está?”

 

– “Muito bem”, ele me respondeu. Uma resposta, convenhamos, perfeita para uma pergunta desnecessária. Qualquer um que o visse naquele instante saberia que ele estava bem, muito bem. Mas como evitar tal pergunta diante de alguém que não vemos há muito? “Na verdade”, ele continuou, “eu não dou importância para isso. Você me conhece e sabe que eu não dou a mínima bola para essas coisas. Tô me lixando”. Agora sim, uma resposta tipicamente guzikiana.

 

Estávamos no sexto andar e apertamos o botão do elevador. Olhei para ele e, timidamente, fiz a pergunta que há milênios repousa na garganta da humanidade. “Guzik, como é lá onde você está?”. Ele me olhou com aquele jeito seguro e acolhedor que empregava todas as vezes em que, no seu íntimo, sabia estar diante de uma lição: “A melhor coisa de lá”, ele me disse, “é que ninguém faz planos. Não existem planos. Se você me perguntar o que eu vou fazer hoje à noite, eu não sei. Ninguém sabe. E você não imagina como isso é bom”.

 

Entramos no elevador, que acabara de chegar. Apertei o térreo. O elevador começou a descer e freou bruscamente entre o quarto e o terceiro andar. As portas se abriram. Diante de nós, uma parede branca e empoeirada, o reboco grosseiro, intransponível, o pesadelo de qualquer claustrofóbico. Guzik me olhou e lançou o último sorriso. Mudo. “Não é aqui ainda”, eu consegui dizer antes que ele, se possível mais luminoso, abrisse seu caminho naquela parede tão improvável. As portas do elevador se fecharam e eu acordei.

 

Eu poderia dizer aqui muitas coisas sobre o Alberto Guzik. Coisas que já foram ditas, mas que nunca são demais. Impressões sobre o amigo, sobre o professor, o escritor, o ator e o crítico, cujo olhar apurado faz uma falta cada vez mais absurda diante da aridez intelectual que hoje passeia pelos nossos cadernos culturais. Mas eu prefiro dizer só isso: que ele está bem, sorridente e leve como nunca e que não tem planos para hoje à noite.

 

Cá entre nós, não sei se acredito muito nesta última parte. Se existir um teatro lá onde ele está, nós todos sabemos muito bem quais são seus planos para hoje à noite.

 

 

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