Em 21 de novembro, a partir das 19h, a SP Escola de Teatro e o Selo Lucias lançam o livro Eternizar Em Escrita Preta – Volume 5, livro que compila as três dramaturgias vencedoras do Prêmio Solano Trindade 2024.
O novo volume traz as criações dos três premiados em 2024: César Divino (Minas Gerais), com o texto “Memórias de Um Afogado”; Michel Xavier (São Paulo), com o texto “Boreta”; e Monize Moura (Sergipe), com o texto “Depois da Fronteira”.
No dia, o livro será distribuído gratuitamente ao público e também estará disponível para download na internet.
O poeta, ator e psicólogo Michel Xavier foi um dos vencedores desta edição do prêmio.
Ele é aluno do curso de Dramaturgia na ELT – Escola Livre de Teatro de Santo André, sob a orientação de Daniel Veiga, e ex-aluno do Terreiro de Teatralidades Pretas, sob a orientação de Salloma Salomão e Flávio Rodrigues. Também é cofundador e ator da Companhia de Teatro Flor do Asfalto, coletivo da zona leste de São Paulo. O espetáculo “Boreta” é seu primeiro trabalho dramatúrgico.
Confira a entrevista com Michel Xavier:
Seu texto vencedor foi “Boreta”. Pode nos contar um pouco sobre ele? O que os leitores podem esperar quando o livro for lançado no próximo dia 21?
“Boreta” é uma dramaturgia sobre o quanto o amor próprio é fundamental para a existência de nós, homens negros. Perceba que digo existência, e não resistência. Justamente porque acredito que nós homens negros estamos cansados de resistir, nós queremos existir, queremos viver plenamente! O texto é a história de dois homens negros que se encontram numa sala de estar. Eles sabem que são a mesma pessoa, em tempos diferentes. Conversam e relembram histórias enquanto tentam escrever uma peça de teatro: a história de dois homens negros que se encontram para lembrar que o amor próprio é fundamental para a existência do homem negro. Os leitores podem esperar um texto cheio de afetos, que busca retratar as inseguranças, as fragilidades, os medos, mas também a força, a sensibilidade e a poesia existente nas masculinidades negras.
E como foi seu processo de escrita para criar “Boreta”?
O processo tem início em 2023, quando cursei o Terreiro de Teatralidades Pretas na Escola Livre de Teatro de Santo André – ELT, sob a orientação dos mestres Salloma Salomão e Flávio Rodrigues. Na época, não tínhamos a proposta de escrever uma dramaturgia, mas passei a olhar com mais carinho para minhas relações afetivas sobretudo na relação com meu pai, que sempre foi muito complexa. Neste ano de 2024, ingressei no Núcleo de Dramaturgia da ELT, sob as orientações do mestre Daniel Veiga, com o desejo de falar sobre o quanto é difícil para nós homens negros lidar com os nossos sentimentos. Mas isso ainda era muito vasto. Então certo dia eu assistia a uma entrevista em que a cantora Bia Ferreira dizia: “Nós não fomos ensinados a nos amar”. Na hora eu pensei: É isso! Preciso aprender a me amar e preciso falar sobre isso! Aos poucos fui me dando conta de que talvez essa seja uma alternativa para lidar com os atravessamentos da vida. Eu nomeio isso de Autocuidado Preto enquanto ferramenta pra vida. Por fim, e não menos importante, preciso ressaltar o motivo do título da peça. Ao longo do processo, mesclei histórias reais do meu pai e minhas para escrever o texto. Mas isso ainda não dava o título da dramaturgia. Foi então que olhei com mais generosidade para um elo que nos une: minha avó paterna, falecida há alguns anos. Poucos meses antes de falecer, ela me contou que tinha um sonho, o de ir ao teatro assistir a uma peça. Ela faleceu antes de realizar esse sonho. Boreta era a forma como minha avó se referia às pessoas quando queria dizer que elas eram bestas, bobas. Era uma forma carinhosa e peculiar de demonstrar seu afeto. Quando fui escolher o título, optei por fazer essa homenagem póstuma. “Boreta” é a maneira de dizer: ela vai estar no teatro sim!
Quais são suas grandes inspirações artísticas que agregam no seu trabalho dramatúrgico e também como ator?
Comecei a gostar de dramaturgia lendo Ariano Suassuna. Mesmo quando não estudava dramaturgia, amava ler as peças dele. Pensando em inspirações da dramaturgia contemporânea, gosto muito dos trabalhos de Aldri Anunciação e Jhonny Salaberg, os admiro muito e quero escrever igual eles quando eu crescer (risos). Em relação às outras inspirações, Racionais MCS foram minha grande referência na adolescência. O Emicida e o Baco Exu do Blues mais recentemente vieram trazendo essa questão da afetividade masculina do homem negro e isso me fascina. Por fim, nosso mestre Cartola, que é quem consegue sintetizar de forma mais bela e poética todas estas questões. Bebo também da fonte das poesias de Sérgio Vaz, Manoel de Barros e outros poetas. Sobre inspirações de vida cito alguns: meu pai, minha mãe, meu irmão, meu avô materno, as minas da Companhia de Teatro Flor do Asfalto (grupo do qual sou cofundador), tem meu amigo cantor e compositor Patrick Gomes, entre muitas outras pessoas.
Como poeta e psicólogo, como essas outras áreas de pensamento agregam e influenciam sua escrita e seu percurso no teatro?
Elas me fazem ver o mundo melhor. Elas me fazem ser mais sensível e mais generoso, com o outro e comigo. Gosto muito de um verso que li certa vez em algum lugar que dizia: “O poeta certa vez me disse: / – Eu sinto muito. / Não era um pedido de desculpas”. Acho isso lindo e me identifico muito. É esse sentir muito que eu levo pra dramaturgia, pro teatro e pra vida. Em relação à psicologia, gosto muito de uma fala do escritor Rubem Alves, que diz: “Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir”. Ser psicólogo me possibilitou isso. Aprender a ouvir as pessoas. Aprender a acolher as pessoas. E nesse sentido há uma curiosidade: quando eu era pequeno, me recordo de estar em reuniões de família vendo os adultos conversando e querer dar minha opinião, mas ninguém ouvia. Naquela época, meu sonho era crescer pra falar e ser ouvido e respeitado. Hoje, aos 36 anos, geralmente sou ouvido e respeitado nos espaços que frequento (exceto naqueles em que a branquitude faz valer seus privilégios), e isso tem me ensinado que ao realizar meu sonho de infância, talvez seja mais importante ouvir do que falar. Exemplo disso é que no meu texto há uma fala de um homem negro que atendi enquanto trabalhava como psicólogo: “A única coisa permanente é a mudança”.
Quais dicas você daria para outras escritoras e escritores negras e negros que também estão começando suas carreiras literárias e desejam escrever novas peças, desejam participar do Prêmio Solano Trindade do ano que vem?
Gosto de lembrar Belchior, que certa vez disse: “Não me sigam porque eu também estou perdido”. Dito isto, na última virada de ano (2023 para 2024) eu estava na praia, sozinho e refletindo sobre as promessas de Ano-novo. Naquela noite estrelada à beira-mar me fiz apenas uma promessa para este ano: me acolher. A dica que dou é: se acolham. Sejam generosos com vocês. Se permitam. E como diz um antigo provérbio africano: “Espero que quando a morte chegar, que ela te encontre vivo”. Que nós, Pessoas Negras, continuemos vivas!
+ Leia a entrevista com o autor César Divino
+ Leia a entrevista com a autora Monize Moura