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Crítica da peça “VILA RICA ou A história de um coração que quer ser ocupado”

Cena da peça "VILA RICA ou A história de um coração que quer ser ocupado", nas Satyrianas 2023.

Cena da peça “VILA RICA ou A história de um coração que quer ser ocupado”, nas Satyrianas 2023. | Foto: Coletivo Fotomix/Robson Gonzaga

Crítica da peça “VILA RICA ou A história de um coração que quer ser ocupado”, texto produzido durante a oficina “Olhares: Poéticas e Possibilidades da Crítica Teatral”, curso gratuito de extensão cultural da SP Escola de Teatro, ministrado por Amilton de Azevedo. A peça foi assistida durante o Festival Satyrianas 2023, em outubro de 2023.

Em um duelo de marmeladas, entre apresentações de amigos, alunos e colegas de trabalho, decido escrever sobre “Vila Rica ou A história de um coração que quer ser ocupado”, peça musicada oriunda da mesma instituição na qual recentemente me formei diretora teatral, a SP Escola de Teatro. De lema “o importante é não estar pronto”, os trabalhos gerados na Escola costumeiramente exercitam a sugerida importância – com aproximadamente dois meses para experimentação, pesquisa e produção, os processos, ainda que extremamente frutíferos, tendem a ser um tanto atropelados e o equilíbrio entre as produções das diversas áreas criativas (entram em jogo estudantes de direção, dramaturgia, atuação/humor, iluminação, sonoplastia, cenografia e figurino e técnicas de palco) se estabelece a partir de algumas concessões. Pedagogicamente, trata-se de um positivo exercício do trabalho em equipe, do desprendimento de egos e da busca pela harmonia artística e inter-relacional. Artisticamente, por vezes causa um gosto amargo na boca, acompanhado de uma estranha sensação de que, a cada desencanada compulsória, uma parte da integridade dos artistas e do trabalho é deixada para trás, em nome da linha de chegada: as apresentações do fim do semestre letivo.

Julgo primordial a contextualização pois, deduzo eu, esse pode ter sido o caso da equipe de “Vila Rica”. Apresentada pela primeira vez em dezembro de 2022 na Unidade Brás da SP Escola de Teatro, a peça conta a história de quatro moradores de uma ocupação, que recebem a chegada de um potencial novo inquilino. Ronaldo, entrelaçado com a carismática Jhuly, se fascina com os moradores e com a dinâmica da habitação, ainda que apresente alguns pensamentos confusos a respeito do direito à moradia e à ascensão social. Atendente de padaria, o personagem reproduz o discurso dominante daqueles que se cegam para sua realidade social e recebe, de seus novos companheiros Loló, Bituca, Jhuly e Perigor, um belo chá de revelação – de classe.

Após apresentação na Unidade Brás, a equipe deu continuidade ao trabalho, tendo participado do 28º FETESP em Tatuí, do 1º Festival de Teatro Profissionalizante de Barueri e agora do Festival Satyrianas 2023. E tendo tido a oportunidade de comparecer a ambas as pontas dessa linha do tempo, fui capaz de atestar um salto.

A parábola desse salto, tenho certeza, tem o formato da trilha de montanha russa que qualquer grupo que decide tentar a sorte na estrada trafega. Originalmente com impostos 25 minutos, o trabalho tem agora o dobro da duração, embora não tenha o dobro de cenas. A conta bate quando se entende que o tempo da cena foi dilatado, os textos criticamente revisitados, os respiros aumentados e novas marcações geradas. E julgo que é justamente nesse processo de decantação e assentamento que os trabalhos (em especial os universitários e de cursos profissionalizantes) reconquistam ou consumam sua dignidade cênica.

É claro, não deposito tamanha confiança em minha memória para garantir que todas as passagens que considerei inéditas tenham sido de fato geradas recentemente. Ainda assim, a mais chamativa e, a meu ver, mais feliz mudança se dá na disposição do público e dos atores. A anterior espécie de semi-arena com passarela interna dá lugar para uma dinâmica frontal de palco italiano, que é condizente com a linguagem do trabalho e não precisa ser evitada; sobretudo por grupos que se arriscam em festivais da logística “15 minutos para entrar e 10 para sair”. Com o olhar direcionado, o público visualiza as paredes imaginárias dos quartos da ocupação Vila Rica, setorizados por um cenário minimalista e em boa distribuição com a banda, que firma sua importância em cena.

Com a calma condução da sonoplastia e dos atuantes, os personagens também passam por um processo de dignificação. Antes avatares arquetípicos das peças necessárias para o funcionamento de uma engrenagem social, passamos a entender mais das motivações e angústias daqueles moradores, que apesar do bom humor e disposição com o recém-chegado Ronaldo, vocalizam o corre de quem rala todo dia para sobreviver, tendo que “escolher entre o café e a marmita”, nas palavras da artista de rua Loló. As injustiças se tornam cada vez mais evidentes, e se gera um fervor interno daqueles que só podemos sentir com a luta, a juventude, a identificação e a boa música.

De fato, o importante é não estar pronto. E o bonito também.

Ficha técnica

“VILA RICA ou A história de um coração que quer ser ocupado”, da Cia. Quase Poética de Teatros. Direção: Lucas Guilherme Sollar, Dramaturgia: Andrews Nascimento, Elenco: Bruna Custódio, Higor Ferreira, Naty Thyaie, Rodrigo Cotrim e Victoria Forlepa.

Emma Jovanovic é atriz graduada no Instituto de Artes da UNESP, diretora teatral formada pela SP Escola de Teatro, produtora cultural, artista circense e professora de teatro e circo em equipamentos culturais públicos e privados da capital. Integra a Benvinda Cia, o Grupo Tropeçaria e o núcleo de treinamento Geometrias (In)congruentes.




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