SP Escola de Teatro

Olhares: Quem salvará?

POR PAULO FRANCO, especial para a SP Escola de Teatro

Dentro das atividades teatrais do Festival Satyrianas 2019, um segmento interessante é o denominado Ouvir e Contar que se constitui de leituras dramáticas feitas em apartamentos. Com a curadoria de Marici Salomão, e co-curadoria de Vana Medeiros.

O texto “Calibre 762 – Da pólvora ao peito”, de autoria da dramaturga Júlia Zocchi — que também assina a direção da leitura — é um dos textos selecionados, e que colabora para a habilitação do que podemos chamar “Teatro Denúncia”. A leitura ganha uma carga dramática sem exageros na voz de Letícia Karen, que coloca o espectador/ouvinte em uma relação confortável com o conteúdo do texto, de uma forma provocativa que não faz com que sua violência incomode.

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Logo no início do texto, a bala protagonista se funde ao corpo do menino vítima. (Vítima de quem? Da bala?). A última frase em vida dessa criança é: “Eles não viram que eu estava de uniforme, mãe?” — em referência direta ao assassinato de Marcos Vinícius da Silva, ocorrido no Complexo da Maré (RJ). Daí em diante, a bala assume o protagonismo da cena. E os questionamentos da bala com a própria existência e destino.

Questionamentos sobre a violência surgem durante a leitura, mas a bala assume a responsabilidade e se coloca como a própria violência. Mas, e se ela não fosse colocada em um fuzil? E se essa bala tivesse a função de um peso de papel na mesa do escritório? É um texto contemporâneo e urgente. Uma discussão que traz de imediato o texto de Caryl Churchill, “Sete crianças judias”, onde o principal eixo é o como contar para as crianças sobre a violência e o quê a justifica. Mas esse texto, “Calibre 762”, vai além. A guerra informada por Júlia Zocchi não foi declarada, faz nos dias atuais mais vítimas fatais que a guerra judaica/palestina, não tem data para acabar e não se acabará por decreto.

Conseguimos com essa guerra mapear para quem foram fabricadas as balas. Tem cor de pele, tem CEP específico, tem gênero. Só não há piedade. Os banhistas convivem com as armas que guardam essas balas. Ir à praia na Zona Sul carioca traz consigo uma sensação de segurança — mesmo que ilusória, mesmo que estatística — bem maior que ir ao piscinão de Ramos. Em certo momento do texto, a bala que quer holofotes tem a esperança de se findar em um corpo branco. Corpos negros são somente estatística. E então, vem o mote do texto: quem nos salvará da bala? O uniforme escolar não salvou.

 

Paulo Franco é participante da Oficina Olhares — Uma Poética da Crítica, ministrada por amilton de azevedo, como atividade de extensão cultural da SP Escola de Teatro. Os participantes foram convidados a escrever críticas de espetáculos das mostras AutoPeças e Ouvi Contar, dentro da programação das Satyrianas 2019.

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