POR PAULO SCALABRIN, especial para SP Escola de Teatro
Não é novidade encenações teatrais serem realizadas fora dos palcos. Algumas trazem experiências que parecem extrapolar o sentido da verossimilhança. Um exemplo recente: a leitura dramática de “Estilhaços de Janela Fervem no Céu da Minha Boca”, pelo grupo A Digna, apresentada quinta-feira (14), como parte da programação Ouvi Contar, dentro do festival Satyrianas 2019. A proposta da leitura em um apartamento real conferiu uma atmosfera intimista à história de um casal em crise, envolto a dilemas sentimentais, profissionais e sociais.
Realizado em três atos, o recorte de 20 minutos do texto permite uma proximidade já no início. Ao abrir a porta do imóvel, o espectador adentra a vida do casal — como se fizesse parte do ambiente, daquela relação — e é atravessado por experiências que envolvem questões de gênero, religião, anseios e frustrações, angústias e depressão. A sensação de pertencimento é reforçada ao percorrer os cômodos do apartamento, no “desconforto” de sentar-se numa cama, numa banqueta, de ficar em pé. O público se transforma em um personagem passivo de uma proposta cênica que tem como um dos pontos centrais a delimitação tênue entre ilusão e realidade.
A densidade dramática é reforçada pelas luzes claras do apartamento. Lâmpadas comuns conferem frieza aos espaços de atuação e tornam o distanciamento entre ator e público praticamente inexistente.
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Nos segundo e terceiro atos, uma caixa no centro da cena parece conter a solução para os problemas — e suscita uma crítica como se as resoluções das nossas crises pudessem ser compradas, encomendadas pela internet. Fica a pergunta: pode o dinheiro resolver tudo?
Outra reflexão é sobre o uso da tecnologia como válvula de escape da realidade e o fato dela aproximar quem está longe, mas, muitas vezes, afastar quem está perto.
No elenco, Helena Cardoso e Paulo Arcuri demonstram afinidade em cena vivendo personagens paradoxais. Ela, uma profissional em ascensão, que encontra em uma colega de trabalho o afeto que não existe mais no casamento. Uma mulher cansada da rotina afetiva e sufocada pelo próprio estilo de vida, sintetizada em cena na relação conturbada, no apartamento de 27m² onde vivem, no tradicionalismo familiar e na religião.
Ele, por outro lado, é um personagem misterioso que transita entre a fantasia e a realidade. Sente-se um fracassado, ao mesmo tempo em que acredita ser o responsável pela ascensão profissional da companheira. É violento, autoritário, machista e se automutila. Assim como a companheira, enfrenta uma crise que está além do relacionamento: é existencial. Em suma, Paulo Arcuri faz uma interpretação potente de uma personagem que transita entre extremos, ora tentando estar no controle, ora demonstrando submissão.
Os diálogos densos ganham alívios cômicos em alguns momentos da dramaturgia de Victor Nóvoa: na música romântica de uma banda nacional ou na importância dada ao recebimento de um e-mail. O humor é apenas um respiro para um novo mergulho na intimidade do casal e uma nova onda de discussões que ressaltam violências, preconceitos e a necessidade de se adequar aos padrões sociais como forma de construção e solidificação de uma identidade.
Com direção de Eliana Monteiro, “Estilhaços de Janela Fervem no Céu da Minha Boca” contrapõe o mundo exterior com o interior de cada um de nós. O eu e o outro. O indivíduo e o coletivo. Faz uma crítica à sociedade contemporânea — na mesma linhagem do filósofo Byung-Chul Han — ao levantar questões como a importância exacerbada dada ao desempenho e à eficiência atribuindo a isso, entre outros aspectos, o esvaziamento da alteridade e a falta de atenção das pessoas com o que está ao redor. Com quem está ao lado.
Sendo um dos grupos contemplados pela 34ª edição da Lei de Fomento ao Teatro da Secretaria de Cultura da cidade de São Paulo, A Digna deve estrear o espetáculo no próximo ano. Cabe ao grupo o desafio de manter a mesma proximidade entre o contexto cênico e público, tão bem realizada no apartamento, quando o espetáculo ganhar os palcos. Mesmo que o cenário seja outro, assistir a peça será um exercício fundamental para quem busca refletir sobre o atual modo de vida e suas problematizações.
Paulo Scalabrin é participante da Oficina Olhares — Uma Poética da Crítica, ministrada por amilton de azevedo, como atividade de extensão cultural da SP Escola de Teatro. Os participantes foram convidados a escrever críticas de espetáculos das mostras AutoPeças e Ouvi Contar, dentro da programação das Satyrianas 2019.