SP Escola de Teatro

Em “Novos Normais”, Os Satyros não esquecem das velhas saudades

Por Cabeça de Touro, especial para SP Escola de Teatro

 

Quem foge da saudade, 

preso por um fio, 

se afoga em outras águas, 

mas do mesmo rio 

(Maria Bethânia) 

 

Somos diferentes, mas não podemos fugir de alguns sentimentos em COMUM: a saudade. Não sabemos dimensionar qual o tamanho da saudade – se é que saudade tem tamanho – mas temos a certeza que todos a sentem… e como sentem. “Saudade de andar de mão dada” gritava um. “Saudade de gritar merda” fala outro. “Saudade dos barulhos dos sinos da igreja”. “Saudade de filosofar com desconhecidos nas ruas” É a partir do grito que se faz o espetáculo Novos Normais: sobre sexo e outros desejos pandêmicos, com roteiro de Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez (que também assina a direção). O grito da saudade, o grito do corpo confinado e marcado, o grito dos desejos que irrompem o ser humano mergulhado na solidão pandêmica. Luz. A Cia. de Teatro Os Satyros clareia as mais profundas transformações humanas durante essa pandemia.

Final de 2020. Ainda é muito cedo para pensar o futuro, destino, caminho, seja lá como chamam, de muita coisa. E pensar o teatro? Qual seu futuro? Já se passaram muitos meses desde o começo dessa grande pandemia. Mais de 170 mil mortos só no Brasil. Estabelecimentos comerciais, espaços e instituições públicas em sua grande maioria, mesmo com o afrouxamento das políticas sanitárias, permanecem fechados. Arriscar pensar o “novo” normal, o novo corpo “normal”, os “novos” desejos normais, pensar até mesmo o “novo” campo performático normal requer muita coragem, tendo em vista que existem mais incertezas do que certezas. Mas é preciso arriscar, como fazem os vinte atores que formam e modulam o espetáculo.

Uma coisa é certa: é preciso tramar sobre as possibilidades de continuar existindo, é momento de reconstruir, refazer o teatro. Como diria a música do Queen, “The show must go on”; o show tem que continuar. O espetáculo Novos Normais: sobre sexo e outros desejos pandêmicos leva ao público indagações sobre a dialética dos afetos, comportamentos, rotinas e de como estamos lidando com tudo isso. Saudade nós sentimos até mesmo dos barulhos indesejados de uma sala de teatro, que agora foram substituídos por falha na conexão, oscilação da internet e, por isso, a perda de alguns elementos para a compreensão do texto. Mas tem justificativa. Tudo é muito novo, adaptar e até mesmo criar uma peça virtualmente demanda tempo, organização e paciência. Será que nessa pandemia ainda temos paciência? Pena que não é questão de escolha, ter paciência tornou-se necessidade. 

Tocar em sentimentos tão latentes como a saudade é muito difícil, mas Os Satyros fazem isso com uma grande sensibilidade nesta obra. “Do que você sente saudade?“. Essa foi a pergunta feita pelo elenco que, através de um grupo no WhatsApp, convidou os espectadores a enviar um áudio falando do que mais sentem falta. “De ir pegar minha filha na escola”, “De beijar”, “De ir para um festival de música”, “De rir em público” – essa foi a minha. Quantos de nós não estamos com saudades das pequenas coisas, dos abraços, dos olhares, dos cheiros. Mas nem todas as saudades são iguais. A saudade do negro é diferente, como canta o ator André Lu. Em uma performance belíssima, provoca: “Saudade de entrar em um supermercado e não ser seguido. Saudade de ser parado pela polícia e não ser confundido com um ladrão. Saudade de algo que nunca tive”. Ao falar sobre isso, André Lu questiona não só o sentimento da saudade, mas de onde e a partir de quem a saudade é sentida e como ela é sentida.

São muitas as possibilidades de pensar tudo que nos cerca. Ainda estamos em  um processo de assimilação da realidade todos os dias. Mas uma coisa é certa: “My make up may be flaking, but my smile, still, stays on. The show must go on”. Minha maquiagem pode estar escorrendo, mas meu sorriso permanece. O show tem que continuar.

 

* Cabeça de Touro é participante da oficina olhares: poéticas críticas digitais, oferecida pela SP Escola de Teatro e ministrada pelo crítico Amilton de Azevedo, que supervisiona a produção e edita o material resultante.

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