SP Escola de Teatro

Bravíssimo | Bráulio Pedroso por Renato Sérgio

Apresentação do livro “Audácia inovadora”, de Renato Sérgio para a Coleção Aplauso da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, de 2010 (Leia a obra, na íntegra)

 

 

São Paulo, metade dos anos 1940. Em meio à calmaria da época, o dia parecia ter mais de 24 horas. A cidade girava em 75 rotações e o bairro das Perdizes era o nosso pequeno paraíso particular. Nem sombra do tal capítulo interessantíssimo da andradiana Pauliceia Desvairada. Ainda havia um status social chamado classe média. Bastava-nos a leveza de viver quase sem problemas, à base de bolinhas de gude, bicicletas Peugeot, Gumex ou Glostora nos cabelos, entre inocentes bailinhos sem DJs, em casa de um e de outro. Dois pra cá, dois pra lá, sem torturantes band-aids nos calcanhares, aquelas dancinhas sincopadas de par em par eram um grande prazer, embora sujeitas às pequenas desilusões de praxe. Ninguém ficava sentado quando The song is you vinha da vitrola, na voz-veludo de Frank Sinatra ainda crooner da orquestra de Tommy Dorsey, antes de passar o microfone para Dick Haymes e partir para a glória. Muitas emoções, nenhum chilique, que chá curava. No mais, fora Flash Gordon, um interplanetário pioneiro servido em capítulos semanais no Cine Santa Cecília, nossos super-heróis de verdade eram aqueles que desciam do bonde andando, de costas, na ladeira da Rua Cardoso de Almeida.

 

Éramos felizes e sequer desconfiávamos desse mero detalhe. Enquanto isso, lá no alto, na bucólica Rua Caiubi ainda sem nenhum espigão a arranhar-lhe o céu, um casarão funcionava como se fosse o refúgio quase diário dos vazios de alguns de nós. Era ali que o Bráulio morava, era ali que a irmã mais velha dele, linda como a Maureen O’Hara, cantarolava La vie en rose e eu me sentia bem demais. Foi quando juntamos nossas mesadas para comprar o celuloide, arranjamos uma maquininha de filmar emprestada e, durante as férias escolares de junho, aconteceu uma adaptação de Romeu e Julieta em curtíssima-metragem, dirigida pelo Bráulio e na qual aquele primo da Julieta – Mercúcio ou Teobaldo? – que duela com Romeu e morre, era eu. Juntos, nós dois fizemos então um cursinho de cinema no Museu de Arte, além de outro, de Iniciação à Estética, no Museu de Arte Moderna, ainda na Rua Sete de Abril. Os fins de tarde eram no bar do museu, no mesmo prédio, entre goles de altas conversas, sem gelo, das quais éramos dois atentos ouvintes privilegiados da mesa de Almeida Salles, crítico de cinema do Estadão, e Delmiro Gonçalves, crítico de teatro do mesmo jornal, além de outras figuras de igual quilate, inclusive Vitor Lima Barreto, eufórico com o prêmio especial do Festival de Cannes de 1953 para seu filme O Cangaceiro.

 

Um dia, Bráulio quis se levantar da cama e não conseguiu. O teto passou a ser seu limite. Continuei a visitá-lo quase diariamente, até que, de repente, nossos caminhos se bifurcaram. Devia estar escrito nas estrelas, quem sabe, nos nossos horóscopos. Ou talvez porque ele tenha tido a sorte de um amplo acesso à cultura desde cedo. Por volta dos 20 anos, por exemplo, já tinha contato com Clóvis Graciano, Sérgio Milliet, Oswald de Andrade, Flávio de Carvalho, Lasar Segall e Brecheret, enquanto alguns de nós outros estávamos ocupados em botar a bola sete na caçapa da sinuca e mais interessados em ouvir Agostinho dos Santos inaugurando seu canto num taxi-dancing da Avenida Ipiranga ou Tito Madi, numa galeria da Rua Dom José de Barros, dizer que chovia lá fora. Até que, no final da segunda metade dos anos 1950, quase nos cruzamos em nossos começos profissionais, ele no Estadão, eu nas Folhas. Atraído pelo canto da sereia, vim para o Rio em 1960, 11 anos depois Bráulio viria também, trazido pela grande revolução de Beto Rockefeller que ele, um estreante no reino encantado do faz de conta tinha acrescentado ao cotidiano da pátria. Uma trama cujo conceito foi o toque inicial da transformação das nossas novelas em autêntico produto nacional, no conteúdo e na embalagem. Qual livro, qual tricô, qual palavra-cruzada, qual nada, a estranha luminosidade daquela telinha tinha preenchido o velho vácuo doméstico de sempre e se transformava no pão nosso de cada noite.

 

Foi só no começo de 1970 nosso reencontro, num apartamento alugado por ele no Leme, já funcionando em pleno regime de open house, cheio de gente, entre outros, um José Wilker recémchegado ao Sul maravilha e, levado por mim a pedido do próprio Bráulio, o Juarez Machado ainda decolando para a fama com uma exposição em galeria da Rua Barata Ribeiro, atualmente, sinal dos tempos, abrigando uma imobiliária. Nesse, digamos, segundo capítulo de nossas vidas, o contato foi mais intenso ainda, durante os quais trocamos muita coisa, de tudo, de ideias a lembranças. De tão longas, nossas conversas às vezes faziam a noite ficar pequena, com direito a lágrimas, entre risos, quando chegava a hora de alguma recordação. Entrevistei-o várias vezes para publicar em jornais e revistas, uma delas, minha preferida, abre o terceiro ato deste livro. Acontece que não há memória que guarde tanta coisa acontecida durante quase meio século de nossas vidas, então, para que este livro fosse o que é, foram necessárias algumas visitas à Biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa, onde está guardado o acervo dele contendo parte de sua corajosa obra.

 

O tempo passou, o ser humano fez o planeta ficar de mau humor, o mundo mudou. As amizades já não são mais como foi a nossa, nem tão duradouras, muito menos tão profundas. E eu não podia deixar que, 20 anos depois da morte dele, a proverbial desmemória nacional transformasse meu amigo-irmão-camarada Bráulio Pedroso em mais um ponto de interrogação: Quem?! Pois é desse causador de pelo menos uma transformação radical em nossa já sexagenária televisão, além de alguns outros marcos históricos de autoria dele, enfim, de todos esses antes e depois, é dessa figura antológica de nossa teledramaturgia, da vida trepidante e da obra contestadora dele, que vamos falar agora, em três atos quase teatrais. Pedaços de uns dias em que os enredos de nossas novelas ainda eram fruto da imaginação, da criatividade, da competência, e não cacos de vida apanhados do chão, simples retratos da realidade como ela é. São gotas de uma velha e saudosa época em que as histórias ainda começavam com aquelas três suaves palavrinhas mágicas: era uma vez… 

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