SP Escola de Teatro

"Alberto, para os Amigos", por Aimar Labaki

Alberto para os amigos, Guzik para quem o admirava (ou não) a distância, Alberto Guzik, escritor, dramaturgo, ator, crítico, professor, homem de teatro faria 67 anos hoje. Mas  a contagem foi interrompida há pouco menos de um ano, em 26 de junho de 2010.

 

Artistas, ao morrer, deixam para trás seu trabalho. Alberto Guzik é um caso excepcional: um ano após sua morte, sua obra só faz crescer – numericamente e em prestígio. 

 

Sua trajetória no teatro é única. Começou como ator, aos 4 anos; encerrou-a, ator, aos 66. Com um longo interregno como crítico. O mais respeitado e querido dos críticos de sua geração, ainda que, como bem disse Décio de Almeida Prado, “crítico bom (seja) crítico aposentado”.

 

Relutei muito em incorporar a esse texto reminiscências pessoais. Mas “ouvi” a voz de Alberto, debochando: “Tá com medo de que, meu caro? Vão te desancar do mesmo jeito, não importa o que você faça”.

 

Conheci Alberto, crítico. Eu já fazia teatro há alguns anos – tendo inclusive ganho um APCA como iluminador – quando, por circunstâncias fortuitas, ocupei o espaço de crítica na Folha de S. Paulo. Autodidata, minha formação intelectual era excepcional para minha idade – mas insuficiente para exercer a crítica no jornal de maior visibilidade do  País. Se consegui alguma qualidade ao exercer a função foi graças à orientação de umas poucas pessoas, Alberto Guzik entre elas. 

 

Alberto nunca foi conhecido pelo bom humor ou cordialidade à primeira vista. Fui uma exceção. Nos entendemos de primeira, num encontro desses inevitáveis para quem exerce a função – jurado de prêmio. Nasceu dali uma amizade, cuja primeira época  está retratada em seu romance “Risco de Vida”. (Para quem ainda não percebeu, no livro, sou, entre outros, o gordo que dirige o Fusca da namorada.)

 

Ele foi dos mais francos, diretos e informados interlocutores que já tive. Um mestre  a contragosto, que, entre indicações bibliográficas e dicas  determinantes, não pensava duas vezes antes de dizer que um texto meu era “uma merda”. Ao mesmo tempo, eu tinha certeza de que ele me respeitava intelectualmente. Não perderia tempo comigo se assim não fosse. 

 

Em minha primeira viagem ao exterior, duro e sem roupa apropriada para o outono, presenteou-me com um trench coat. “ Foi do Galízia. Ah, antes disso alguém foi pro Vietnam com ele.” Ao carinho, se agregava um gesto de continuidade. Galízia, além de um de seus maiores amigos, era uma de suas referências intelectuais. Com  a roupa veio a sensação de pertencer a uma linhagem.

 

Quando estreei como diretor e dramaturgo, em “Tudo de Novo no Front” (92) , ele estava lá. “Eu sabia que toda essa tua atividade desenfreada, fazendo todo tipo de coisa – publicidade, crítica, aulas, TV – era só uma preparação para alguma coisa muito boa. Você achou seu caminho!” Sua crítica no jornal, no entanto, foi severa. Era ainda mais duro com os amigos.

 

Alberto era avaro em intimidades e reminiscências. O aqui e agora era sua chave cotidiana. A convivência durante um momento particularmente conturbado de sua vida pessoal nos levou a uma proximidade que não lhe era natural. Aquilo era a exceção , não a regra. Mas, aberta a porteira, pude privar de seu afeto vida afora.

 

Descobri seu então “passado como ator”. Como aos 4 anos tinha estreado como ator com Júlio Gouveia e Tatiana Belinky. E perseguira a ideia de subir no palco, mesmo tendo ambições “menos epidérmicas”.

 

A passagem pela EAD definiu sua inserção na intimidade da geração de artistas com quem dialogaria em sua carreira de crítico. Formou-se  em 1966, na mesma turma que Gabriela Rabelo, Luís Carlos Arutin, Francisco Solano e Zanoni Ferrite. Foram seus contemporâneos, ainda que em outras turmas, Celso Nunes, Umberto Magnani, Antônio Petrin, Isa Kopelman, Bri Fioca e Cláudio Lucchesi. Foi aluno de Paulo Mendonça, Alfredo Mesquita e de um jovem Antunes Filho. 

 

Não escamoteava sua relação pessoal com quem fazia teatro. Não fingia não conhecer as pessoas (às vezes não as cumprimentava por mau humor mesmo, mas isso já é outra história) nem ser de outra tribo. Sempre foi um homem de teatro – mesmo quando sua função exigia que estivesse de fora da produção. Escreveu para o Shopping News, Isto É, Jornal da Tarde e O Estado de S. Paulo. 

 

Teve, é claro, brilhantes companheiros de geração – Ilka Maria Zanotto, Mariangela Alves de Lima, Edelcio Mostaço, Jefferson Del Rios, Maria Lúcia Pereira e poucos outros. Mas sua origem como ator o diferenciava na cumplicidade com a produção – que temperava com severa objetividade na avaliação de espetáculos.

 

Sua trajetória intelectual teve como padrinhos Sábato Magaldi e Jacó Guinsburg – o que, de saída, já o diferenciava. Ocupou o lugar de Sábato no Jornal da Tarde; mais que uma substituição, uma sucessão. O trabalho com Jacó, para além do ganha pão, acabou gerando o que é sua mais importante obra como intelectual, o livro “TBC: Crônica de um Sonho”, resultado de sua dissertação de mestrado. Ainda hoje, um livro fundamental para entender a história do teatro brasileiro.

 

Já entrado na meia idade desabrochou seu maior talento, o de ficcionista. Em um romance e um livro de contos publicados em  vida revelou-se prosador maduro, que soube temperar as influências e  alcançar voz própria. Demorara para publicar porque ainda não estava pronto – e não era de se vestir em público (apesar de ter sido ator nos Satyros, detentor do troféu de menor camarim do teatro brasileiro – perto dele, o do Teatro de Arena é quase outra sala).

 

“Risco de Vida” ficcionaliza sua história de amor com Emílio Alves, seu companheiro levado pela AIDS, no início dos anos 80 – assim como Galízia e Edmar Pereira, dois grandes amigos a quem o livro também é dedicado. Para além de contar uma linda e trágica história de amor, o livro retrata uma São Paulo subterrânea – a mesma que está nos livros de Caio Fernando Abreu e nos filmes de Sérgio Bianchi e Ugo Giorgetti.

 

“O Que É Ser Rio, e Correr”, conjunto de contos com tema em comum, reforça a tendência ao painel e à ficção que flerta com o ensaio, sem abrir mão da lógica rarefeita das personagens. Trata-se de uma longa digressão sobre o papel desagregador e libertador da Arte na vida do cidadão comum.

 

Não parou de escrever depois disso. Deixou dois romances inéditos, “A Estátua de Sal de Sodoma” – sobre o amor impossível entre um homem de 50 anos e uma jovem – e “Um Palco Iluminado” – a saga de uma trupe de teatro dos anos 60 aos 90, tendo por pano de fundo a política brasileira. Não teve tempo de publicá-los em vida. O teatro não deixou.

 

O caráter cada vez mais gerontofóbico dos meios de comunicação de massa privaram Alberto de um espaço para exercer a crítica e o jornalismo cultural – e, de quebra, de seu ganha pão. Entre cursos, palestras e a dura vida de freelancer, numa idade em que deveria ter alcançado uma autonomia financeira que lhe permitisse se concentrar em seu trabalho maduro, Alberto voltou à angústia gerada pela instabilidade econômica que marca grande parte de seus inéditos diários mais antigos.

  

A expulsão de sua zona de conforto – o lugar de já decano dos críticos em atividade – teve, no entanto, um efeito libertador: permitiu seu renascimento como artista do palco. Primeiro, escrevendo e dirigindo; depois, descobrindo-se o que julgava não mais ser: um ator!

 

Os parteiros dessa última e feliz fase de sua vida foram Rodolfo García Vázquez e Ivam Cabral, cabeças e corações dos Satyros. O convite para trabalhar como ator levou-o a abraçar o grupo como sua última família. A amizade com Ivam ultrapassaria os palcos – o que prova o fato de ele ter ficado como testamenteiro literário do amigo. Ivam foi o grande companheiro de viagem desta aventura artística e humana.

 

Ao aceitar o convite dos Satyros, voltou à cena, como se toda sua carreira até aquele momento fosse apenas uma grande introdução. Ou um entreato, se preferir. Fez questão de perder a objetividade. Falava do grupo e de sua produção como o centro do universo, como sói acontecer com quem se entrega completamente ao processo criativo.

 

Sua volta aos palcos não tinha sido tão feliz – a direção para uma adaptação de “Risco de Vida”. A peça não dava conta da inteligência e sensibilidade do romance. E a direção tentava suprir esta e outras deficiências da montagem com um frenesi que era a antítese da serena reflexão que o romance proporciona.

 

Mas Alberto logo achou o veio e produziu uma série de textos que viriam a ser publicados pela Imprensa Oficial com o título de “O Teatro de Alberto Guzik”: “Um Deus Cruel”, “Errado”, “Na Noite da Praça” e “Cansei de Tomar Fanta”.

 

O que realmente lhe dava prazer, no entanto, era o ofício de ator. Em várias montagens dos Satyros, mas, principalmente, no “Monólogo da Velha Apresentadora”, de Marcelo Mirisola, exibia uma incontida alegria em se mostrar despudorado e corajoso, como a exorcizar os anos de sisuda lide intelectual.

 

Deixou, além dos dois romances inéditos e das críticas, nunca reunidas em livro, vários volumes de diário e correspondência – testemunho vivo e inteligente de décadas de nossa vida teatral.

 

Eu e Alberto vivemos movimentos com direção invertida. Enquanto ele saía do gabinete e das redações e caía nos palcos e na praça, fui pouco a pouco me recolhendo a um cotidiano cada vez mais caseiro. Os poucos encontros dessa fase eram marcados por um abraço e um beijo que selavam o afeto intacto, mas deixamos de conviver cotidianamente. Uma entrada carinhosíssima em seu blog marcou o  nascimento de minha filha – seguida por outras referências veladas a ela, em respeito a minha idiossincrática obsessão pela privacidade.

 

Ligou-me quando soube de seu diagnóstico. Nos reencontramos então.

 

Visitei-o no hospital. Uma vez, no momento em que recebeu a alta da UTI. Falamos por uma hora. Contou, emocionado, sobre uma reconciliação familiar e seus planos de produção literária e teatral. Na última, ele estava no quarto, sentado – cansado, exausto mesmo. Falou mais de uma hora sobre o que faria ao sair dali, o quanto havia para escrever, atuar, amar, viver. Mas falava com um sorriso de esguelha, como que rindo de si mesmo e de uma esperança que sabia inútil. Nunca deixou de usar consigo mesmo o veneno que usava com os outros. 

 

Nosso último encontro mesmo foi um almoço, dois dias antes de ele ser internado. Não falávamos com calma há anos. A conversa atravessou a tarde, com direito a duas garrafas de vinho diurno. O mais importante ele deixou para o final.

 

Pediu que eu guardasse os originais do romance que ia mandar também para Ivam (há anos tinha me dado também uma cópia do “Palco Iluminado”, quando compartilhei com ele a opção por não publicar ainda). Pediu que eu me responsabilizasse pela edição.

 

E disse: “Aimar, se eu morrer, vou feliz. Estou no auge. Faço o que sempre quis: sou ator. Na minha idade, consigo levar a vida com desejo – e sou desejado. Olho para frente e acho que não tem como melhorar. Ao contrário, a decadência é inevitável. Portanto, se for agora, vou no auge. E um artista quer sempre ser lembrado no auge”. 

 

Será, Alberto, será.

 

 

Confira o depoimento de outros artistas e amigos de Alberto:

 

BARBARA OLIVEIRA

 

DANILO SANTOS DE MIRANDA

 

EVALDO MOCARZEL

IRENE RAVACHE

JEFFERSON DEL RIOS

MACKSEN LUIZ

MARIA ADELAIDE AMARAL

 

MARIKA GIDALI

MARIO VIANA

NAUM ALVES DE SOUSA

REGINA RICCA

SÉRGIO RÓVERI

TANIA BRANDÃO

VERA HOLTZ

 

Galerias de Fotos:

Fotos Pessoais de Alberto Guzik

Alberto Guzik e a SP Escola de Teatro

Espetáculos com Alberto Guzik
 

Vídeos:

Alberto Guzik em cena

Francisco Medeiros sobre Alberto Guzik

Kil Abreu sobre Guzik

Luiz Valcazaras sobre Guzik

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