O Acre é um estado da região Norte do Brasil, que faz fronteira com duas outras federações (Bolívia e Peru) e conta em todo o seu território com a presença da Floresta Amazônica. Seu nome surgiu da palavra “Aquiri”, que significa “rio dos jacarés” na língua nativa dos índios Apurinãs, os habitantes originais da região banhada por aquele rio.
Um estado na extremidade do Brasil, país que possui 14% das reservas mundiais de água-doce e onde se encontra a maior bacia hidrográfica do mundo. Uma nação de dimensões e diferenças continentais cujos rios serpenteiam pelo mapa, ligando sotaques, culturas e histórias, como veias que irrigam os diversos órgãos de um corpo.
Mais de três mil quilômetros separam o Acre de “outro rio”, o Rio de Janeiro, onde eu me sentei em frente a um computador para assistir ao espetáculo Afluentes Acreanas na programação da Mostra Aldir Blanc na SP Escola de Teatro.
Pouco mais de quatro horas de voo me separam da Associação Teatro Candeeiro, realizadora do espetáculo. De barco, eu e o Google não fomos capazes de mensurar. Toda esta distância, no entanto, não impediram que eu pudesse me conectar às histórias contadas por Lonara Teixeira, Hysnaip Moura e Iandra Moraes em cena, sob a direção atenta de Maria Jaqueline Chagas, também autora do texto.
O Acre existe e resiste! Oportunidade única para conhecer a história do estado
Conectar-se às histórias do Acre é conectar-se às histórias do Brasil, desde um Brasil de povos originários, passando por um Brasil que aspira se tornar potência econômica a partir do processo extrativista, até um Brasil mais recente, de florestas incendiadas e descaso ambiental.
O espetáculo leva ao palco o território dos livros didáticos e telejornais, mas dá espaço também a um outro Acre, visto pela lupa, aquele conhecido somente por quem pisa descalço em sua terra, tantas vezes banhada por sangue. Traz à tona personalidades acreanas conhecidas do grande público, como Chico Mendes e Marina Silva, e ainda outras tidas como “anônimas”; a autora presta homenagens à ancestralidade e ao próprio circuito teatral acreano, reverenciando quem veio antes e abriu as águas para que a Associação Teatro Candeeiro pudesse surgir.
Dentre tantas vozes, emerge também um brado, o grito político de jovens artistas que não se furtam a denunciar a perseguição e a chacina existentes até hoje em um território sob permanente disputa, ainda que quase sempre camuflada. Com a propriedade única de quem sabe exatamente do que está falando, entre o manifesto e a contação de histórias, o trio de atores mergulha o espectador, com sutileza, nas mais diversas narrativas. Unindo habilmente cada uma dessas afluências, a autora forma, aos poucos, um rio maior, caudaloso, de correnteza potente.
Exercício contra o esquecimento de nossas origens
E se o espetáculo tem o mérito de nos (re)conectar com as origens esquecidas e, muitas vezes, propositalmente apagadas de um Brasil que vive em negação de si mesmo, o grupo faz processo análogo ao propor um reencontro, também, com um fazer teatral genuíno. Se nas grandes metrópoles já nos habituamos a ver espetáculos teatrais rebuscados (inclusive por vezes dialogando apenas com a própria classe artística), a proposta trazida em Afluentes Acreanas é, ao contrário, despretensiosa e, sobretudo, honesta.
Lançando mão de poucos elementos cênicos, incluindo alguns instrumentos musicais regionais utilizados pelo próprio elenco, o espetáculo remete aos saberes orais, pautando-se na noção essencial de que para se fazer teatro é necessário, apenas e em princípio, de comunicação entre atores e plateia, entre indivíduos, podendo esta comunicação se dar das mais variadas formas, inclusive mediada pelo entre telas de um mundo pandêmico. O figurino assertivo criado por Naomhy Narrimann e a iluminação pontual de Maria Jaqueline Chagas merecem muitos elogios também.
O espetáculo emerge da mesma necessidade já proclamada pelo ensaísta alemão Walter Benjamin (1892-1940), de “escovar a história a contrapelo” ou, para usar de uma referência mais próxima e popular, pelo samba-enredo da Mangueira do ano de 2019, de “contar a história que a história não conta, o avesso do mesmo lugar”. Mais do que nunca, é a hora de reescrever a história em oposição à história oficial que, certamente, não foi contada por indígenas, mulheres ou seringueiros.
Nesse processo de reescritura, o teatro tem tido papel fundamental ao trazer para o centro da discussão os marginalizados, no sentido mais literal da palavra: aqueles que estão às margens. Das margens dos livros às margens do Rio Juruá, o que Associação Teatro Candeeiro brada não é apenas a condição de resistir. O que se reivindica durante todo o espetáculo é a lógica de existir, de colocar – definitivamente – seu Estado no mapa. Com seu trabalho, ao resgatar a história e as histórias de seu território, o grupo acaba por se inscrever também em outro mapa, mais complexo e abstrato, o mapa da cultura brasileira.
*Leandro Fazolla é ator, produtor e crítico de arte. Doutorando em Artes Cênicas pela UniRio. Mestre em Arte e Cultura Contemporânea e bacharel em História da Arte pela UERJ. Fundador da Cia. Cerne, em São João de Meriti, e do Festival Cenáculo de Teatro, na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro.
Mostra Aldir Blanc na SP reúne 12 peças das 5 regiões do Brasil
Comunicadores convidados dialogam com 12 peças da Mostra Aldir Blanc na SP
Mesa de Discussão: A importância da Lei Aldir Blanc para a Arte na Pandemia