Mauri Paroni
Chá e Cadernos 200.15
Na primeira aula de teatro que tive na vida, o professor Demo Ghidelli nem boa noite deu. Disse: “O Teatro é sacrifício.” Nascido em Modena, emigrou ao Brasil. Na Itália, décadas após, numa dessas coincidências mágicas do teatro, vim a ser diretor de Giovanni Franzoni, cujo pai, amigo fraterno de Demo, repetia a frase. “Sacrifício”, entendi depois, era ritual, era oferecer a vida, a biografia, a nossa historia. Entendi que é intuir o fim da infância para que esta continue onírica. No sonho do teatro se vive através do sacrifício. No sonho da música se vive indo ao Paraíso. Cartola. Mozart. Bach. Chopin. José Maurício. Wagner. Tom Zé. Beethoven. No teatro podemos, se quisermos, ir direto pro “inferno” – um dos nomes da caixa de ressonância sob o palco italiano tradicional: “infero” Inferior. Baixo. Mas precisei de uma vida pessoal inteira para entender o preço a pagar para ir ao Paraíso num palco – com meu irmão gêmeo Renato e Sylvia.
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O excelente debate de marcas pessoais [realizado na SP Escola de Teatro, mediado pelo psicanalista Sergio Zlotnic, com Elisa Band, atriz, Gabi Costa e João Luiz Guimarães] estimula-me a narrar vivências teatrais nos últimos artigos; estimula-me a citar, além da prática de dramaturgismo, independente da estética praticada no quotidiano, a abertura definidora do dramaturgismo de cena Elisa, que evoca o passado de seu olhar para o futuro na descrição do Dr. Zlot sobre o luto.
Vivendo o luto infinito pela transição de minha companheira de vida, a memória toma emprestadas de Nossa Cidade, de Thornton Wilder (1897-1975): lápides falam por metáfora de personagens falecidos; discutem, narram e filosofam em jazigos do cemitério da cidade. São cenas mediadas e editadas pelo diretor de cena.
Segue falas da montagem estudantil do colégio Dante Alighieri, dirigida em 1977 por Giovanna Borioni. Com elas aprendi que a via do palco era via pessoal; com elas, juntei internamente a minha biografia à minha futura companheira de vida: Sylvia. Ela atuava como a personagem da Sra. Soames.
Sylvia… muitas vezes me apaixonei por você porque me apaixonei as mesmas muitas vezes pelo teatro, por aquele palco de escola, numa peça em que eu não estava, mas te ouvi pelas falas da Sra Soames sobre o casamento da amiga no final do segundo ato. Foste tão ironicamente feliz. Feliz. Eu quis ser feliz daquele jeito, como aprendi contigo depois, na vida. Aquela luz, como uma fotografia, não me deixa esquecer a profunda ironia risonha da estrela que és agora.
(…)
Naquela noite, houve o que o escritor suíço Stendhal (1783-1842), em seu pequeno ensaio “Do Amor”, chamou de “Segunda cristalização” – A Primeira seria o medo de não mais rever uma primeira paixão. Seria o amor a nascer? Uma atração imediata em sala de aula tornada paixão avassaladora controlada por um intelecto que escrevia cartas compulsivas e diárias, pelos três anos de nossa frequência escolar. Depois, o teatro. Eu me apaixonava diariamente pelo prazer também compulsivo.
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“É assim que, se colocarmos um galho seco em uma mina [de sal-gema] ele estará tão carregado de cristais e seu aspecto primitivo tão transformado que teremos dificuldade em reconhecê-lo. Assim também é o amor: na sua mais pura essência ele é feito de imaginação e uma idealização que faz parte da sua própria vida”. De Do amor, 1820. (*)
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Voltemos a Nossa Cidade. Sylvia caminhava pela Sra Soames sob uma trilha sonora que tocava a marcha nupcial de Mendelsohn. Tinha a voz que jamais se calou em mim:
[Sra. Soames
Mas não é um par adorável? Oh, nunca estive num casamento tão bonito. Tenho certeza de que serão felizes. Eu sempre digo: “felicidade”, eis o que interessa! O importante é ser feliz! (O noivo e a noiva alcançam os degraus e dirigem-se à plateia. Um forte jato de luz foi lançado sobre eles. Descem até a plateia e correm alegremente pela passagem entre as poltronas.)
(…)
Que casamento adorável! Oh, eu gosto tanto de um bom casamento, você não? Ela é uma noiva encantadora!
(…)
Diretor de Cena
E você, Emily, aceita este homem, George, como seu marido?
Sra. Soames
Creio que nunca vi outro casamento tão adorável como este. Mas sempre choro. Não sei por que, mas sempre choro. Gosto tanto de ver os jovens felizes, você não gosta? Oh, eu acho isso adorável! (O anel. O beijo.) (0 palco repentinamente envolvido por um silêncio estático.)
O Diretor de Cena, com os olhos postos em distância, diz à platéia)
É o fim do segundo ato. Dez minutos de intervalo, pessoal. ]
(…)
Paralisado, coração disparado, não entendi a violência do sentimento que me raptou indefeso, sem ação, sem raciocínio. O parco fôlego que a paixão me permitiu foi a atuação de Sylvia, que ressaltou a felicidade da percepção do privilégio de estarmos vivos, instante após instante – como a admoestação de Simon Stimson deixará evidente na
tensão dialógica entre as lápides. Percepção marcante na sua personalidade. Conhecendo-a na convivência de anos depois, a sua vida sob as palavras de tão boa dramaturgia, fez – além do entendimento respeitoso que qualquer direção de boa qualidade não dispensa – e ainda faz notar e vida insubstituível na revolução interior coletiva do palco.
[ (…)
Sra. Soames
Quem é, Júlia?
Sra. Gibbs, sem levantar os olhos.
É minha nora, Emily Webb
Sra Soames, um pouco surpresa, mas sem emoção
Ah, a estrada até aqui deve estar muito lamacenta. De que ela morreu, Julia ?
Sra Gibbs
De parto.
Sra Soames
Parto – quase uma risada – ah, estava me esquecendo de tudo isso. Como a vida é terrível… – com um sorriso – e maravilhosa.
Simon, lançando um olhar para o lado
Maravilhosa é?
Gibbs
Simon, lembre-se.
Sra Soames
Eu me lembro do casamento de Emily. Que casamento adorável. E me lembro dela lendo o poema da classe no dia da formatura. Emily foi uma das alunas mais brilhantes que já se formaram no ginásio. Eu ouvi o diretor dizer sempre isso. Cheguei a visitá-los na fazenda um pouco antes de morrer. Uma fazenda muito bonita.
Uma mulher entre os mortos
É na mesma estrada onde nós morávamos.
Um homem entre os mortos
É justamente perto do terreno de pic nic de Elks. Lembra-se. Joe ? Perto do lago onde íamos no dia 4 de julho. É uma bonita fazenda.
Ficam quietos. O grupo ao redor da sepultura começa a cantar –
Uma mulher entre os mortos
Sempre gostei desse hino. Estava esperando que eles cantassem alguma coisa.
Um homem entre os mortos
Minha mulher. Minha segunda mulher sabe todas letras de hinos que existem. Ela tem memória formidável. Ela sabe tudo decorado.
Pausa.
Emily aparece entre os guarda-chuvas usando um vestido branco. Seu cabelo cai nas costas e está preso com uma fita branca como se fosse uma menina. Ela vem vagarosamente contemplando os mortos admirada, um pouco ofuscada. Pára no meio do caminho e sorri debilmente.
Emily
Olá.
Vozes entre os mortos
Olá Emily.
Emily
Olá senhora Gibbs
Emily
Olá, mãe Gibbs
Senhora Gibbs
Emily.
Emily
Olá.
O hino continua. Emily volta-se para olhar o funeral.
Diz sonhadoramente
Está chovendo.
Senhora Gibbs
Sim. Eles irão embora logo, querida. Descanse,
Emily senta-se na cadeira vazia ao lado da senhora Gibbs.
Emily
Parece que foi há milhares de anos desde que… como parecem tolos. Não precisam ficar assim.
Senhora Gibbs
Não olhe agora, querida. Eles logo irão embora.
Emily
Oh. eu gostaria de já estar aqui há muito tempo. Não gostaria de me sentir nova aqui. Como vai Senhor Stimson?
Simon
Como vai, Emily?
(…)
Emily
não se lembra, mamãe Gibbs? a herança que a senhora nos deixou? Mais de trezentos e cinquenta dólares.
Sra Gibbs
Sim, sim, Emily
Emily
Tem um dispositivo no bebedouro que não deixa transbordar, mamãe Gibbs, e nunca baixa de uma certa marca. É ótimo. (Sua voz se abaixa e seus olhos se voltam para o grupo do funeral) Aquilo ja não será o mesmo para o George, sem eu estar lá, mas é uma linda fazenda. (Súbito, olha diretamente para a Sra. Gibbs.) Os vivos não entendem, não e?
Sra. Gibbs
Não, minha filha — não muito.
Emily
Até parece que eles ê que estão fechados em caixões, não é? Sinto-me como se os tivesse conhecido há mil anos. Meu filho está passando o dia na casa da Sra. Carter. (Vê o Sr. Carter entre os mortos.) Oh, Sr. Carter, meu filho está passando o dia em sua casa.
Sr. Carter
É?
Emily
Sim, ele gosta muito de lá.
(…)
(Ela olha para o diretor de cena e pergunta abruptamente, entre lágrimas.)
Pode alguma criatura humana compreender a vida, enquanto ela vive?
O diretor de cena
Não . (Pausa) Os santos e os poetas talvez, um pouco.
(…)
Emily
Oh. Sr. Stimson, eu devia ter ouvido o que me disseram.
Simon Stimson (com uma violência crescente, amargamente)
Sim, agora você sabe! Agora você sabe! É isso o que significa estar vivo. Mover-se dentro de uma nuvem de ignorância; ir para cima e para baixo, pisando os sentimentos dos outros que a cercam. Gastar e perder tempo como se tivesse um milhão de anos para viver. Ser sempre escravo de uma paixão egotista, ou outra qualquer. Agora, você sabe – e aquela existência feliz a que você quis voltar para ver. Você gritou para eles? Você os chamou?
Emily
Sim, eu os chamei…
Simon Stimson
Agora, você os viu como são na cegueira.
Sra, Gibbs (ardentemente)
Simon Stimson, essa não é toda a verdade e você sabe disso.
(Os mortos começam a se agitar. ]
(**)
***
Sylvia disse mais de uma vez a confidentes que “procurava, se existisse, o Amor”. Dela aprendi que, se não quisesse “estar solitário na arte, deveria procurá-lo também. E não entre nós, que já demonstrou que está.” (sic) Está na arte que vem da existência de quem a pratica, muito para além da estética, da poética e mesmo do lugar comum que acabei de escrever.
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(*) Henri Beyle, mais conhecido como Stendhal (1783 –1842) – Tradução M.P.
(**) Tradução de Este Lessa, da coleção Teatro Vivo, Abril Cultural, 1977 – usada na montagem estudantil citada.