Nossa memória é feita de imagens (reais e inventadas) e, nessa perspectiva, uma fotografia é sempre o equivalente visual (in)exato da lembrança. Na tentativa de aproximação entre a encenação viva, pulsante do espetáculo “Teatro de bonecas”, escrito por Milena Filócomo (texto) e Adriano Cypriano (cenas), e os fragmentos de imagens arrancadas do tempo e do espaço por intermédio da câmera fotográfica, busco estabelecer um diálogo entre essas duas artes da representação: o teatro e a fotografia.
A trama, composta por memórias autobio(visio)gráficas, não apenas expõe as histórias entrecruzadas das atrizes Milena Filócomo e Jackeline Stefanski, mas estabelece uma infinidade de vínculos com a memória dos espectadores pela potência universal dos temas em questão. A obra trata sobre memória, identidade e alteridade e encontra apoio para a construção dramática das personagens na figura de Nora, de “A casa de bonecas”, de Henrik Ibsen. Por não aceitar mais viver em um mundo de aparência e de submissão ao pátrio poder, Nora abandona o lar (quase uma prisão) no sentido de transformar-se e tornar-se sujeito de si, reconhecido pelo outro.
Todos os elementos simbólicos e expedientes teatrais confluem para mesclar-se à segunda inferência do espetáculo, que é “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa. Desse modo, as personagens, em dupla, reconhecem-se em suas contradições e entendem que o caminho se faz no caminhar, ainda que desconhecido.
As atrizes, caracterizadas como bonecas (semi)nuas, à espera de um figurino que remonte suas histórias, ressignificam o espaço deslizando e reconstruindo-o em busca da “apertada” casa de bonecas, revisitando seu passado, suas moradas, até se encontrarem num mesmo território, limitado e (in)finito: o palco.
A encenação remete a um flashback de imagens esquecidas entre o tempo e o espaço, quase como um filme ou cartão de memória fotográfico, repleto de momentos (com)partilhados em família e esquecido no interior da câmera…
Ao revelar esse filme diante do público, o espetáculo apresenta uma sequência de imagens que desnudam o universo feminino – sua beleza, sua violência e suas contradições. As cenas entrecortadas não têm um fluxo contínuo e, ao serem interrompidas, desconstroem a trajetória da vida – como um trem que descarrilha e destrói sonhos.
A memória das personagens passa a ser apresentada numa velocidade cada vez mais frenética, quase como rascunhos de um filme (storyboard), e vai sendo sobreposta, apagada, retirada da lembrança, como na bela e cruel cena de afogamento das bonecas. Apagar essas memórias pode trazer a possibilidade de renovação? É possível separar a obra da existência de sua autoria?
Assim como a fotografia, que carrega a marca do registro, a trajetória de nossa existência carrega os traços de tantas das nossas histórias e experiências que, embora não possam ser apagadas, permitem revisitação por intermédio da arte.
Bob Sousa é fotógrafo de teatro e mestrando em Artes Cênicas no Instituto de Artes da Unesp sob a orientação do Prof. Dr. Alexandre Mate.