1 – Em maio de 2014, assisti a “Um espetáculo absoluto”, da Companhia Sr João, no espaço da Companhia do Feijão. O grupo português contava com quatro atores em cena: Pedro Barreiro; Óscar Cutello; Ricardo Silva; e Silvana Ivaldi – responsáveis, também, pelo texto e pela encenação.
Fomos recebidos pela “pessoa física” de cada um dos atores, por assim dizer. Não pelos personagens, mas pelas pessoas. Há uma diferença, não?!
Óscar trabalhava na SP Escola de Teatro, e o conhecíamos de lá. Havia alguns amigos entre os espectadores, de modo que a espera até que a peça começasse foi agradável. Os atores nos serviram chá e café. Bolachas também.
O espaço tinha muitas cadeiras, sofás, poltronas. Nada que parecesse um teatro, e não tínhamos ideia de onde era o palco. Sentimo-nos “em casa”. Tudo parecia uma simpática visita. Até voltei ao passado: ali era permitido fumar. Tomamos café e fumamos, como antigamente. A peça não começava e não percebíamos nenhuma indicação de que em alguma hora ela começaria. Jogando conversa fora, esqueci do tempo. E assim eu me sentia distraído e bem…
Em um certo momento, porém, inapreensível, houve um silêncio. E, nesse instante, destacaram-se dois grupos: nós, os espectadores, e eles, os do elenco. Entretanto, eu não saberia dizer quem riscou essa fronteira. Não sei se nós, espectadores, em nosso silêncio repentino, involuntariamente, circunscrevemos uma linha de divisão. Ou se “eles”, os atores, através de algum gesto que eu não vi, instauraram o “início”…
Com isto, com esta “fundação”, a visita agradável “desandou”. A peça começa. E – se não me falha a memória – eu vi um dos atores, Pedro Barreiro, muito revoltado, reclamando da divisão, justamente, que se desenhara no espaço. Hostil, com seu sotaque lusitano, acusador, ele diz que nós, espectadores, estamos separados dele por uma ideia. Uma ideia, abstrata e poderosa, afastava a plateia do elenco. Conforme compreendi, a culpa era nossa!
2 – Bem, há uma cerimônia, via de regra, que separa ator de espectador. Há um pântano entre os dois. É uma fomalidade, note-se, similar àquela que se verifica entre analista e paciente. Os deuses do palco e os do divã devem ser irmãos.
Mas eu nunca tinha visto in loco essa separação se efetivar com tamanha nitidez. Nunca tinha experimentado a dissolução da horizontalidade como num passe de mágica. E, honestamente, não sei se, naquele instante, fomos hipnotizados pelo teatro, ou se – ao contrário – despertamos de um sono profundo.
Uma linha invisível se desenha toda vez que começa um espetáculo, numa configuração que atribui funções diferentes ao elenco e à plateia. Quanto mais ritualístico o teatro, tanto mais essa separação é relativizada ou se desmancha. Pois o rito supõe participação explícita dos espectadores – que não mais simplesmente assistem a uma cena que se desenrola no palco: o público fabrica junto o espetáculo.
Nessa modalidade ritual, vale notar novamente, o exercício teatral se aproxima de modo espantoso dos grupos psicoterápicos que pousaram aqui em São Paulo nos anos 70. Oficinas de experimentação que começaram nos anos 60 na costa oeste dos Estados Unidos, e nos alcançaram uma década mais tarde.
Eram vivências sem protocolo: quadros em branco e sem moldura. Espaços a serem preenchidos sem que possuíssemos nenhuma previsibilidade. Não sabíamos o que seria colocado ali. Qual dor, que conflito, qual desencontro, que confissão. Bússolas lançadas ao mar! Improvisações! Como no teatro performativo, estávamos abertos ao acaso…
“Um espetáculo absoluto” me fez lembrar daquelas experiências – e de como, partindo de platitudes, de vaguidão, de banalidades, subitamente algo essencialmente humano pede passagem e é circunscrito numa cena.
3 – Em outubro de 2013, assisti à peça “Nosferatu”, na sala Beta do Sesc Consolação, com direção de Fabio Mazzoni, e com Eric Lenate e Cléo de Páris no elenco. Quando os espectadores entram no teatro, Lenate já está lá, sentado numa das poltronas da plateia. Ele está tão concentrado – tão personagem – que ninguém se atreve a mexer com ele.
Talvez um ator exale um gás hipnotizante quando vestido de personagem… E talvez também exista um pecado, ou uma proibição, de interagir com o personagem de uma peça… Nós, espectadores, do lado de cá; eles, atores, “em cena”, do lado de lá. Não podemo-nos misturar.
É como se Eric Lenate, em seu silêncio, nos dissesse (sem dizer): “Não se aproximem; sou um vampiro. Estou noutro patamar, no qual vocês, com sorte, entrarão. Não me toquem!”.
4 – Em julho deste ano, fizemos uma temporada curta da peça “Cismei, vou parir!”, no Teatro dos Satyros. Denise Sefer protagoniza o espetáculo, que só não é um monólogo porque dele eu também participo, discretamente, como uma sombra. A peça começa, aliás, tal qual “Nosferatu”, comigo já no palco, sentado numa cadeira. “Em cena”! O público entra e passa por mim.
Como não sou Lenate – meu gás hipnotizante é menos potente –, os espectadores vão entrando, e alguns vêm bater papo comigo. Um deles me apresenta seus amigos. Uma espectadora se ofende porque não dei atenção suficiente. Outra espectadora me apresenta a sua mãe…
Provavelmente, em meu silêncio, era como se eu dissesse ao público (sem dizer): “Prazer em vê-lo aqui! Você veio com a sua nora ou com a sua sogra? Não vai me apresentar? Como está passando a sua vizinha? Inverno quente este ano aqui em São Paulo, não acha?!…”.
5 – Agarramo-nos ao familiar, como um náufrago se agarra a um tronco. Entre ator e espectador, cria-se um fosso de estranhamento. Um espelho d’água, cheio de crocodilos. Essa barreira a ser transposta mobiliza medos primitivos.
“O estranho” é o famoso texto de Freud: “Unheimlich”. O “não-familiar”. Para que se descubra algo que não sabemos é necessário ser atravessado por um caldo de não-familiaridade.
Através de sinonímias, Freud faz coincidir o familiar com o estranho. Heimlich com unheimlich. Grosso modo, a sequência seria assim: familiar, íntimo, escondido, privado, secreto, proibido, estranho, misterioso, enigmático, sinistro…
Através de deslocamentos, num salto, aquilo que é familiar se transforma no seu oposto. Foi esse o contraste que a Cia Sr João provocou, numa guinada notável.
O teatro se dá na quebra da familiaridade à qual estamos habituados. Um estrangeiro se introduz no campo, sem aviso prévio. E, nesse novo registro, o espectador se estranha porque as operações ordinárias – de amortecer as intensidades das coisas do mundo – lhe são momentaneamente retiradas.
6 – A palavra, quando o teatro acontece, ganha espessura peculiar. Ela se desamarra de um fundo massificado, rotineiro, banal, cotidiano, para dizer outra coisa. A palavra que o teatro persegue é inaugural. Ela descortina sentidos adormecidos pelo hábito. Mesmo que em silêncio (especialmente nesses casos), ela é ato que estabelece novas demarcações. Ela é sempre, por isso, performativa. Cria um antes e um depois. Restaura sentidos e retira o sujeito da massa. Despertando-o de seu sono. Des-hipnotizando-o.
7 – O mesmo se dá na psicanálise e na poesia. Ambas – juntamente com as artes do palco – têm um propósito comum: o de explorar a linguagem para que ela diga algo de que esquecêramos. A palavra vale tanto mais quanto mais longe estiver da função fática. Muito embora, como se viu, muitas vezes, é apoiado no senso comum que o espetáculo faz a sua decolagem, criando um acontecimento.
Mas, reconheça-se: em “Nosferatu”, antes mesmo de Eric Lenate transmitir qualquer coisa em seu silêncio, eu mesmo já tinha chegado ao teatro “transferido”: dando linguagem a sua figura! Colocando-o num certo lugar de elevação. Disposto a me deixar conduzir.
A culpa, pois, é sempre do público!
Enfim, dizem que a psicanálise começa antes do paciente chegar à clínica. Sem nem sequer ainda ter jamais visto o rosto de seu analista, o paciente já está em processo, em movimento, desde o momento em que decide procurar ajuda. Algo já se alevantou em seus interiores. Uma conversa, uma agitação, um solilóquio, um incômodo, uma inquietação, um desconforto, um estranhamento…
Igualmente, eu pergunto, será que podemos afirmar um teatro que começa para o espectador desde o momento em que ele, em sua casa, toma banho, veste a roupa e sai de casa? Não seriam estes já os rituais de aquecimento em sua atividade surda? Antecipações de um encontro com o estrangeiro?
Concluindo: o espetáculo de teatro começa bem antes da peça!
post scriptum – A Companhia Sr João tem no repertório uma peça chamada traumatheater – nome interessantíssimo quando se pensa nesses desafios de fronteira que as pesquisas do teatro realizam, embaralhando as temporalidades e as fronteiras oficialmente bem estabelecidas que carregamos… Interrogar é sempre um trauma!
* por Sergio Zlotnic, especial para o portal da SP Escola de Teatro – zzzzlot@gmail.com