Mauri Paroni
Chá e Cadernos 100.64
Teatro não é simulacro!
O monologante acende uma vela para o crânio posto no centro do palco.
Cara Crânia, como sofre o público no teatro.? Ouvi que agora temos alerta de “gatilho”. Gatilho de sangue, de morte, e vai mais saber o que. Chegaremos a um gatilho de simulacro. Mas não compliquemos esta linguagem. Falemos mais simplesmente: Você um dia pertenceu a…
Olha uma etiqueta.
… Geraldāo. Ao corpo de Geraldāo.
Pausa.
Esse era o apelido dele no piscinão de formol do IML. Era meio destruído quando chegou ao necrotério. Disse o cara que te autopsiou e te emprestou para que eu te escrevesse estes monólogos.
Pausa.
Falando de tudo ao final desses monólogos, a ti intitulados.
Pausa.
Estamos justificados pela falta de lugar de fala, mas somos injustos. Theatron quer dizer “o lugar de onde se vê”
Pausa.
Então… o que devo fazer? Não mais escrever, perguntar, monologar?
Pausa.
Dialogar?
Pausa.
Que sofrimento em se reconhecer no lugar de quem está no palco; mas se sofre não pela situação da trama, da narração… mas por não possuirmos mais os meios mais simples: a palavra que corresponda ao real, ou o mínimo dinheiro para a sobrevivência, o tempo para pensar e repensar as desgraças que, no fundo, não seriam minhas não fosse a minha empatia, hoje desprezada. Todos querem ser “bons”, mas maus há.
Pausa.
Há, e no comando de tudo, uma hegemonia de criminosos genocidas, racistas, assassinos reais e deleters, covardes midiáticos eletrônicos, haters, neopentecostais, borderliners, farialimers, me toos, a imunda caterva olavista e os que nem cito dos “com quem está falando?”
Pausa.
Onde vou acabar? Que muro é esse entre o pó e o mal-estar do medo da peste? Porque acho que aqui sumiu muita coisa, muita cultura, muita gente – passaram uma borracha traçando muros.
Pausa.
Acho que você é um carrasco voluntário; um calmo, um que cumpria ordem. Você faz o que diz o chefe, quem decide o tempo de vida, meu tempo de vida.
Pausa.
Eu passei a vida resistindo a isso.
Pausa.
Estudei muito pelo amor do saber, não fiz meio telefonema procurando papel ou fama, um aparecer, uma carreira; fui artista que rodou o mundo pelo saber, seduzir pessoas para as conhecerem – as conhecendo, amei, sofri por não ver isso reconhecido.
Pausa.
Sofro agora por como se vive o que estudei, que amei, amo – a imperfeição e finitude do ser humano, a imperfeição desesperada.
Pausa.
Sou um desesperado.
Pausa.
Um pessimista.
Pausa.
Um insuportável narciso.
Pausa.
Não vou resistir a desistir.
Pausa .
Não me diz nada?
Pausa.
Para que deveria resistir?
Pausa.
E quem consegue resistir? E a que?
Pausa.
O alvo não mais é alvo. É simulacro.
Pausa.
Teatro não é simulacro.
Pausa.
Teatro não é simulacro!
Pausa.
Diga alguma coisa.
O monologante respira e toma um copo de água.
Longo silêncio.
Vou resistir. Não sei a que, mas vou.
Pausa.
Quero uma gramática de reconhecimento à identidade; que não seja uma política central; quero reconhecer este meu problema, este ato de sofrimento. Este aqui. Não quero repetir o que me trouxe aqui. Tem que reconhecer o que te digo. Crânia, esse mutismo não é coisa suportável. Conta o que tens.
Silêncio.
Esse silencio de Crânia é teatro.
Pausa.
O teatro é a trama de meu desespero de ter estudado o que construiu a academia de arte usando a grana do seguro sobre a carga perecível dos escravizados, contados como gado, pelos outro gado manipulado na ausência do teatro. O silêncio de Crânia transforma o grito real da morte do Geraldāo.
Pausa.
São a mesma caveira.
Pausa .
Posso ser um desesperado porque estudei e agora tento construir uma gramática no grito impossível.
Silêncio.
Lamento, mas vou continuar.
Pausa.
Político.
Pausa.
Passo a ser próximo ao banto mesmo sem sê-lo totalmente, assumo a diferença da identidade, não serei marginal para ser herói, não serei bom, como foi Hitler, que cumpriu o que prometeu, como Pol Pot, Idi Amin, Stalin et coetera (*). Trump. E outros mais.
Pausa.
Até me encontrar morto e ir ainda mais perto de ti, Crânia.
Pausa.
Uma última palavra, Crânia, dita por Primo Levi. (* *)Nos seus anos, usava-se “Homem” como Gênero Humano
Pausa.
Antes, prefiro lembrar que “É isto um homem?” descreve o projeto primário dos campos de extermínio: a devastação do gênero humano através da privação.”
Pausa.
Assim têm desmontado a gente.
Pausa.
Saca um bilhete, segura a caveira e lhe sussurra:
“Se compreender é impossível, conhecer é necessário. Porque o que aconteceu pode retornar, as consciências podem ser seduzidas e cegadas: até mesmo as nossas.”
Apaga a vela.
Pano.
(*)
Pol Pot (1925-1998) foi um revolucionário e ditador cambojano, líder da guerrilha Khmer Vermelho; Iosif Stalin foi um revolucionário e ditador da União Soviética após a morte de Lenin. Também foi Secretário Geral do Partido Comunista da União Soviética desde 1922 até sua morte em 1953; Idi Amin Dada foi um general e ditador de extrema direita, dado até ao canibalismo, Presidente de Uganda de 1971 a 1979.
(**)
Primo Levi (1919-1987) foi um escritor e químico italiano, autor de ensaios, romances, contos, memórias e poemas. Sobreviveu ao envio aos campos de concentração e extermínio nazistas na Segunda Guerra Mundial; suicidou-se em Turim em 1987.