A máscara há de ser pele, o sertão há de virar mar…
O filme de Polanski “A pele de Vênus” (2013), em cartaz na cidade, é – em muitos sentidos –uma aula de atuação. Não só pelo excelente trabalho de Emmanuelle Seigner e Mathieu Amalric, os dois atores em cena.
Na história, uma atriz está em teste para um papel numa peça. O encontro dela com o diretor – no teatro em que o espetáculo será encenado – descamba para aquilo que as artes do palco têm de mais essencial: flagra-se o momento em que um ator (ou atriz) encontra a porta de comunicação com o personagem. Nessa passagem, há como que uma troca de voz.
Algumas vezes assistimos a esse fenômeno misterioso nos ensaios de preparação para uma peça. E esse é, para muitos, o momento de maior prazer do exercício teatral. Entretanto, nem sempre esse fundo de alcachofra passa para o palco: nem à estreia, nem à temporada. Pois o teatro caminha na ponta da navalha e está sempre em vias de se cristalizar – e, assim, sempre em risco de deixar de ser teatro.
Na confecção de um espetáculo, a etapa de maior abertura, porosidade, circulação, flexibilidade talvez seja o primeiro encontro do elenco. Tudo ali está em aberto, como numa clareira no meio da floresta – mesmo que o texto já exista. Quanto mais os ensaios avançam e a peça vai ganhando concretude, mais o verde da mata ameaça fechar a clareira – e reduzir o quintal de criação. Mais o tempo passa, mais a floresta ameaça substantivar o verbo. Coisificar o nada!
No processo, eventualmente, o bebê se perde junto com a água do banho! O frescor do primeiro ensaio às vezes não tem fôlego para chegar à estreia. O consolo é que outros bebês nascem na temporada, “no ato”, “em cena aberta”, frutos de erros e acidentes inevitáveis para os quais, felizmente, não há garantia nenhuma.
O filme de Polanski, por meio da revelação do espanto do diretor da peça diante da operação inaugural da atriz (de tornar pele aquilo que era máscara), expõe nossa perplexidade frente às configurações espontâneas que, na arte, as obras vão ganhando. Instantes sagrados em que uma força sem nome toma forma! E algo vai se desenhando pela primeira vez.
Vale notar que, no filme, o teatro que se desenrola é obra sem espectadores: pois ali é apenas um teste. Já se disse que o legítimo teatro, utopia ideal impossível, seria um exercício sem atores: tão sublime que, por magia, assistiríamos apenas a personagens vagando pelo palco! Os atores teriam sumido nessa operação.
A julgar pelo filme de Polanski, o teatro ideal seria também um exercício sem espectadores, o que nos remete a algumas experimentaçoes de Grotowski… Contradição! A contradição é sempre própria dos processos criativos: ela desafia nossa compreensão e é parte dos enigmas adormecidos nos porões do campo das artes.
No filme do cineasta polonês, vemos ainda o produto de um artista ganhar autonomia e, assim, independer do criador. A obra, por encanto, se anima com vida própria; e impõe novos rumos à trama, explicitando a etapa turbulenta da criatividade, em que mesmo as autorias se confundem!
Na peça/filme de Polanski, bem a propósito, a atriz em teste parece saber melhor do produto que o próprio dramaturgo. Ela encontra caminhos, entradas e saídas no texto que eram possibilidades, até então, invisíveis ao diretor (que curiosamente também é o autor do espetáculo – tendo adaptado para o palco uma obra de Leopold von Sacher-Masoch).
“A pele de Vênus” é ode ao teatro – em que, além disso, “de brinde”, assistimos às atuações de Emmanuelle Seigner e Mathieu Amalric.
E, aqui, um parêntesis: a palavra “atuação”, na psicanálise, está ligada a erro, equívoco, precipitação – quase um ato falho, prenhe de motivações desconhecidas. Uma atuação é, com Freud, “passagem ao ato”, uma espécie de acidente (acting out, em inglês).
Nas artes do palco, nas discussões sobre como se dá o trabalho do ator, as palavras “interpretar”, “encarnar”, “representar” e “atuar” estão à disposição para uso, ao gosto do freguês. Porém, são polêmicas, pois carregam visões bem distintas do mundo do teatro.
Se encamparmos o “erro” como ingrediente nuclear na equação da criatividade, teremos de admitir que o termo “atuação” – com seus sentidos psicanalíticos agora também incluídos – expressa bem a posição de risco do ator, e contém a ideia de acidente em seu percurso. Há, dessa forma, uma porção do trabalho do ator que se dá “sem querer”. Por descontrole ou por engano. Ou por graça do acaso.
Enfim, como se sabe, spielen é a palavra alemã que corresponde, na língua portuguesa, ao “atuar” teatral (ou “interpretar”, ou “representar”…). Mas spielen quer dizer (também) brincar. Donde o teatro tem que ser um jogo em que o ator que não brinca não decola! Tal qual, na psicanálise, o analista que não brinca não cura! Nem se diverte!
No dicionário da alma, “brincar” teria de ser definido como “abrir-se ao acaso”…
* por Sergio Zlotnic, especial para o portal da SP Escola de Teatro – zzzzlot@gmail.com