O poeta francês Charles Baudelaire é apontado como um dos maiores críticos da fotografia – que dava seus primeiros passos no final XIX – e a qualificava como “responsável pela decadência do gosto francês”, uma vez que ela trazia em sua essência a obsessão pelo “real”. Para o poeta, a fotografia não possuía o mesmo valor estético de uma pintura, uma escultura e mesmo de uma gravura. Parte dessa ironia sobre a arte fotográfica é apresentada no seu texto “O público moderno e a fotografia”, uma análise crítica sobre o Salão da Academia de Belas Artes da França de 1859.
A figura de Charles Baudelaire – que é contemporâneo ao escritor russo Fiódor Dostoiévski – vem à memória ao rever as imagens produzidas por mim em uma série de ensaios técnicos do espetáculo “Karamázov”, encenado pela Cia. da Memória, com adaptação de Calixto de Inhamuns e Luís Alberto de Abreu e direção de Ruy Cortez. A ideia de reduzir a fotografia a uma simples ilustração do “real” minimiza a potência narrativa da imagem fotográfica. As imagens – assim como textos – são polissêmicas e necessitam constantes releituras, “invasões” e revelações em suas diversas camadas.
E foi nessa “invasão” aos textos “Uma história lamentável” e “Os irmãos Karamázov” que a Cia. da Memória abriu parte das camadas do mundo conturbado de Dostoiévski e apresentou a trilogia: “Uma anedota suja”, “Os irmãos” e “Os meninos”.
A encenação, apresentada de forma majoritariamente narrativa, exigiu do potente elenco composto por Antonio Salvador, Eduardo Osório, Marcos de Andrade, Ricardo Gelli, Jean Pierre Kaletrianos e Rafael Steinhauser a tarefa de fazer emergir aos olhos e, principalmente, aos ouvidos do espectador a natureza existencialista dos temas abordados pelo autor e a riqueza de detalhes narrativos característicos em sua obra. Aliado às grandes atuações, a generosa direção, o cenário de André Cortez, os figurinos de Anne Cerutti e a iluminação de Fábio Retti ajudaram a compor parte da complexidade desse universo.
É certo pensar que a fotografia nasce sob o signo da representação incontestável do mundo visível, mas com a evolução das técnicas, a sensibilidade e o repertório do fotógrafo é possível retomar o caráter da fotografia como forma de linguagem estética.
Este espaço de reflexão permite, de forma breve e menos aprofundada, pensar numa coautoria entre o espetáculo (autor, diretor, atores) e o fotógrafo, que escolhe os fragmentos de imagens que poderão narrar a sua nova história.
O próprio Baudelaire se redimiu com a fotografia e ao longo de sua vida se deixou fotografar por diversos fotógrafos, como Etienne Carjat, Charles Neyt e Félix Nadar. Ao agradecer o seu retrato feito por Etienne Carjat o poeta exalta as características da fotografia e escreve “[…] ela não é perfeita, porque a perfeição é impossível, mas eu raramente vi algo assim tão bom.”
Penso que Fiódor Dostoiévski também aprovaria esse “retrato” da sua obra.
Bob Sousa é fotógrafo de teatro e mestrando em Artes Cênicas no Instituto de Artes da Unesp sob a orientação do Prof. Dr. Alexandre Mate.