O poeta francês Charles Baudelaire é apontado como um dos maiores críticos da fotografia – que dava seus primeiros passos no final XIX – e a qualificava como “responsável pela decadência do gosto francês”, uma vez que ela trazia em sua essência a obsessão pelo “real”. Para o poeta, a fotografia não possuía o mesmo valor estético de uma pintura, uma escultura e mesmo de uma gravura. Parte dessa ironia sobre a arte fotográfica é apresentada no seu texto “O público moderno e a fotografia”, uma análise crítica sobre o Salão da Academia de Belas Artes da França de 1859.
A figura de Charles Baudelaire – que é contemporâneo do escritor russo Fiódor Dostoiévski – vem à memória ao rever as imagens produzidas por mim em uma série de ensaios técnicos do espetáculo “Karamázov”, encenado pela Cia. da Memória, na SP Escola de Teatro, em 2014, com adaptação de Calixto de Inhamuns e Luís Alberto de Abreu e direção de Ruy Cortez. A ideia de reduzir a fotografia a uma simples ilustração do “real” minimiza a potência narrativa da imagem fotográfica. As imagens – assim como textos – são polissêmicas e necessitam constantes releituras, “invasões” e revelações em suas diversas camadas.
E foi nessa “invasão” aos textos “Uma história lamentável” e “Os irmãos Karamázov” que a Cia. da Memória abriu parte das camadas do mundo conturbado de Dostoiévski e apresentou a trilogia: “Uma anedota suja”, “Os irmãos” e “Os meninos”.
A encenação, apresentada de forma majoritariamente narrativa, exigiu do potente elenco, composto por Antonio Salvador, Eduardo Osório, Marcos de Andrade, Ricardo Gelli, Jean Pierre Kaletrianos e Rafael Steinhauser, a tarefa de fazer emergir aos olhos e, principalmente, aos ouvidos do espectador a natureza existencialista dos temas abordados pelo autor e a riqueza de detalhes narrativos característicos em sua obra. Aliados às grandes atuações, a generosa direção, o cenário de André Cortez, os figurinos de Anne Cerutti e a iluminação de Fábio Retti ajudaram a compor parte da complexidade desse universo.
É certo pensar que a fotografia nasce sob o signo da representação incontestável do mundo visível, mas com a evolução das técnicas, a sensibilidade e o repertório do fotógrafo é possível retomar o caráter da fotografia como forma de linguagem estética.
Este espaço de reflexão permite, de forma breve e menos aprofundada, pensar numa coautoria entre o espetáculo (autor, diretor, atores) e o fotógrafo, que escolhe os fragmentos de imagens que poderão narrar a sua nova história.
O próprio Baudelaire se redimiu com a fotografia e ao longo de sua vida se deixou fotografar por diversos fotógrafos, como Etienne Carjat, Charles Neyt e Félix Nadar. Ao agradecer o seu retrato feito por Etienne Carjat, o poeta exalta as características da fotografia e escreve “[…] ela não é perfeita, porque a perfeição é impossível, mas eu raramente vi algo assim tão bom.”
Penso que Fiódor Dostoiévski também aprovaria esse “retrato” da sua obra.