Há tantos anos fotografando espetáculos teatrais e tentando estabelecer um diálogo entre essas duas artes da representação/recriação de fatias de realidade – de um fenômeno artístico aurático e efêmero –, que muitas vezes me sinto em estado de letargia e pautado pelo senso comum. Um olhar comum.
Em arte – e na vida – os caminhos desse olhar pasmado e subserviente ao discurso hegemônico e perverso nos conduzem a lugares e atitudes perigosos e a ausência de crítica e remontagem de um “chão histórico” para a formação do pensamento – uma vez que só tomamos conhecimento de uma parte ou aspecto da realidade –, nos arrastam para o abismo das opiniões e estereótipos.
É vasto o número de fotógrafos que trabalharam a serviço dessa desconstrução do olhar, e aqui destaco a obra de Diane Arbus, fotógrafa norte-americana que atraiu multidões ao MoMa, Museu de Arte Moderna de Nova York, na década de 1970, para ver sua exposição que apresentava monstros seletos e casos extremos – figuras feias – com roupas grotescas ou degradantes, em ambientes desoladores, áridos e miseráveis. A obra de Arbus transmite uma mensagem anti-humanista e um impacto perturbador, pois concentra seu olhar nas vítimas e desgraçados sem servir ao propósito compassivo que se espera de tal projeto.
Ao realizar uma sessão de fotos do espetáculo “Juliette”, da Cia. Os Satyros, baseado na obra do Marquês de Sade, fiquei extremamente tocado pela energia e o brilho nos olhos do jovem e numeroso elenco composto por dezoito atores e atrizes. Estava ali, diante da minha lente, um ponto de vista dissociado, uma franqueza, uma entrega que meu olhar, saturado e muitas vezes acomodado, já não se esforça para reconhecer. A lente curiosa e ágil que procura o melhor ângulo ou enquadramento também é “olhada” pela personagem curiosa com a novidade que o ato fotográfico estabelece ao lugar da cena.
A obra faz parte da Tetralogia Libertina, que o grupo pretende montar ao longo do ano de 2015. O texto, adaptado por Rodolfo García Vazquez e Nina Nóbile, a partir da obra do Marquês, traz com toda força, na representação das sete atrizes que compõem o elenco, Juliette, uma das personagens femininas mais controversas da história da literatura. Rodolfo García também dirige a montagem e conta com as assistências de Gustavo Ferreira e Henrique Mello.
Pela figura de Juliette, em várias fases não cronológicas, a obra propõe, assim como o trabalho da fotógrafa Diane Arbus e tantos outros, apresentar em alegorias patéticas, lamentáveis e muitas vezes repulsivas que é possível fazer com que o público não se mantenha distante do tema.
A encenação é vigorosa, e a ambientação e a iluminação, de Marcelo Maffei e Guilherme Pereira, respectivamente, conduzem o espectador para o universo sombrio e luxurioso em que Sade baseou grande parte da sua obra. Os figurinos, de Bia Pieratti e Carolina Reissman, são um novo espetáculo imagético dentro da cena, potencializam a experiência surrealista visual e sensorial.
O elenco generoso, que se reuniu numa quarta-feira fria para a realização do ensaio, é composto por: Bel Friósi, Bruna Guimarães, Daiane Brito, Diego Ribeiro, Eric Barros, Felipe Moretti, Fernando Soares, Flavio Sales, Janaína Arruda, Lenin Cattai, Lucas Allmeida, Renato Lima, Ren’Art, Ricardo Fernandes, Rodrigo Banks, Sabrina Denóbile, Silvio Eduardo e Stephane Sousa.
A fotografia que dialoga com a cena, que a invade e pulsa junto com as personagens, pode alterar esse estado de anestesia que a sociedade atual tenta reduzir com a supressão do que é aterrorizante e cruel. Mostra que o horror da vida pode ser olhado de frente, que é preciso vencer a falsa sensação de que nada está acontecendo e que estamos imunes a tudo e todos.
E nas palavras de Diane Arbus, que se suicidou em 1971, “a sensação de estar imune era, por absurdo que pareça, dolorosa”.
Bob Sousa é fotógrafo de teatro e mestrando em Artes Cênicas no Instituto de Artes da Unesp sob a orientação do Prof. Dr. Alexandre Mate.