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Janeiro de 2013. Uma ficção de início de ano para renovar a vida com chuva.

Publicado em: 02/01/2013 |

“A Morte da Letra e a Chuva de ‘és’…” de Sergio Zlotnic.

1 – morte da letra – Houve o enterro de uma letra morta, que desejou ser cremada…, mas não foi ouvida!

O cortejo atravessa o morro ao som de um pistão-lamento que chora. Cidadãos aparecem e, elegantes, tiram os chapéus, em respeito à falecida, que era de família católica. Ela, a letra morta, já havia dito tudo que podia… Já tinha cumprido todas as promessas de significar e, no entanto, ainda não havia esgotado inteiramente as possibilidades… Jazia, exausta e imóvel, num caixão cor de vinho. “Descansou!”, diziam uns. O séquito caminha lento, enquanto o povo faz um minuto de silêncio: diante do fim, calar.

Um velho senhor explica a um grupo de crianças, tristonhas e inconformadas, que a letra, ao ser enterrada, se transforma em matéria orgânica e dá origem às árvores, que dão origem aos livros, que criam novas letras. “Uma letra morta é como uma semente… É a renovação da vida…”, afirmou.

“Não há mais carne nesta letra”, constata-se.

Carpideiras, especialmente importadas, foram contratadas e chegaram, vindas da Península Ibérica, bigodudas. Choravam, copiosas, aos quatro cântaros.
Por sobre todos, um chorão, bem plantado e robusto, de raízes volumosas, derramava-se em lágrimas, enquanto o pistão arranhava um chorinho e um fado…
Seguiu-se ao enterro da letra a tradicional chuva de ‘é’.
2 – chuva de “é” – A letra “e” e seu acento “´”, ambos combinados, mas um pouco independentes, choviam, numa revoada.

Os “és” caíam alegres, cada um deles brincando com seu acento, que os cutucava na barriguinha, fazendo-os rir muito, sentindo cócegas.

“É o ‘é’ do momento”, reconheceu o povo.

Alguns acentos, caídos do céu, cravavam-se como um punhal, liquidando seus companheiros, que logo “desmorriam”, molequinhos que são.

Outros, trepados em suas bases, competiam numa esgrima elaborada.

Alguns “es”, tendo perdido seus acentos na queda, os procuravam aflitos, pois, sem eles, acabavam incluindo involuntariamente vários objetos e coisas, condenados a uma eterna adição, como um imã. O “e”, sem seu acento, é muito aderente. Seu acento o salva do grude, interditando, obrigando-o a separar-se de tudo e a afirmar alguma coisa.

Guarda-chuvas foram abertos, pelos quais escorriam os “és”, respingando de caspa os cidadãos.

“A morte da letra provoca esta chuva. Os dois fenômenos estão ligados”, compreendeu finalmente o povo.

A morte da letra ativa uma grande quantidade de “é”, liberando totalmente o presente… Ao contrário, plena de memória, a letra viva extingue o “é” do momento, pois, em geral, carrega muito mais “eras” e “fois”… e um ou outro “será” – que, por ser futuro, é sempre teórico… É raro, mas uma vez ou outra, a letra viva toca, de leve, um “é”, caso no qual a língua é poesia.

3 – Equivalente a este fenômeno, de outro lado, mas em menor escala, o enterro de um arquivo morto, também quer dizer maior liberdade em relação ao passado e às tradições. Três alternativas: 1- desprendimento, 2- doação de agasalhos e 3- limpeza de guarda-roupas.

Deixe passar o que passou. Feliz ano novo, prezado leitor.

 

* por Sergio Zlotnic, especial para o portal da SP Escola de Teatro – zzzzlot@gmail.com