A sedução das penumbras de Fabio Mazzoni já estava lá, no ensaio/espetáculo de dança/teatro “Erzebet”, dirigido por ele, no ano passado. Mal se distinguia a silhueta da atriz/bailarina, enfiada num breu, abandonando-se a metamorfoses e caleidoscópios, que nos faziam viajar num tapete mágico, através de nuvens hipnóticas.
Agora, com a peça “Nosferatu”, em cartaz na Sala Beta, do Sesc Consolação, somente até o dia 11 de outubro, percebe-se um desenho e uma estética peculiares, localizados sempre aquém da palavra, numa sintaxe que já é marca do diretor. Ele parece buscar um lugar de fronteira, entre a força e a forma. Como se fosse movido por uma mesma interrogação, também em seus trabalhos anteriores (“Amor fati”; “Wotan”; “Procurando Schubert”; “Hagoromo”). O que interessa a Mazzoni são vultos, sons e cochichos. E ele os explora com rara sensibilidade e sem pressa nenhuma, encontrando ali muitas linguagens, fazendo-as falar quase por asfixia. Esganando-as, colhe sussurros.
Percorremos assim um universo de murmúrios, fumaça, sombras e velas, nessa releitura da saga mitológica do vampiro, que põe em jogo o tema da captura amorosa maldita, aquela que nos retira de uma ilusória inocência original: nossa raça sofre porque tem saudades de um paraíso que jamais existiu!
As sombras de Mazzoni sugerem e insinuam, antes de afirmar qualquer coisa, deixando ao espectador o trabalho de preencher as lacunas, como deveria sempre ser no teatro, sinal de máximo respeito para com o público.
Para este exercício, o texto de Cléo De Páris se encaixa como uma luva: ela interroga, num moto perpétuo e exausto, nossa condição humana e nossa miséria, cotidiana e ontológica. Há solidão e desamparo, desencontro e perplexidade em sua letra, temas expostos numa língua quase cifrada em seu blog, de onde nasce a dramaturgia da peça.
Além disso, felizmente para nós, Cléo é também atriz. E sua atuação aqui é particularmente inspirada. Na contenção e no cochicho, alcança ainda maior potência, em especial na primeira metade da peça. Ao murmurar seu próprio texto, Cléo interpreta como quem reza.
E talvez por ter escrito todos os versos, como quem fala com seus botões, há extrema intimidade entre boca e palavra.
Dividindo o palco com ela, Eric Lenate, num inacreditável trabalho corporal como vampiro, nada fica a dever a Klaus Kinski, na pele do mesmo personagem do cinema de 1978. Auxiliado pela luz, Lenate parece capaz de assumir a forma que desejar, deslizando sobre seus próprios pés, esvoaçando como morcego ferido. Senão, monstruoso, fazendo uma dança de corte e sedução, ao aproximar-se da fêmea virginal.
Pode-se discordar da opção de trilha sonora, em algum momento da segunda metade do espetáculo. Ou então do volume da música: pois, pela delicadeza da peça, a sonoplastia não deveria nunca se sobrepor ao aspecto visual concebido por Mazzoni. Mas, além disso, independente do volume, a música carrega um acabamento que esta peça teatral insiste em manter em aberto, inacabada, em vias de se completar. Donde aqueles sons e ruídos que ainda não acederam à categoria de música funcionam tão perfeitamente neste experimento.
É na pré-forma que Mazzoni desafiadoramente se instala, senhor absoluto da escuridão, e é dali que ele extrai riqueza maior. E assim nos transporta para outros mundos e para outros tempos!
Não é essa, por acaso, justamente, a história de Nosferatu, senhor das trevas?
Em tempo: vale a pena ler “A ilha dos daltônicos”, de Oliver Sacks. Pois ali temos uma aproximação com aquelas pessoas que nunca distinguiram as cores. Nessa condição, as manchas na escuridão e os infinitos tons de branco e preto ganham uma fantástica espessura. Ganham detalhes, sutilezas e gradações. É outro mundo que se inaugura – e que nós, não-daltônicos, não alcançamos jamais. Para concluir, repetindo, é nessa faixa de realidade que se situam as pesquisas de Mazzoni. Ele é bilíngue: traduz a língua dos daltônicos para o lado de cá!