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Experiência pessoal (um)

Publicado em: 01/02/2024 |

Cabeçalho com o escrito "Chá e Cadernos" e abaixo uma xícara de chá.

Mauri Paroni

Não importa de qual cultura venhamos, a qual cultura almejamos, qual cultura criticamos, qual cultura criamos. Quem frequenta o palco como artista aprenderá, sob a condição de nele permanecer ou não, que “quem fala mal, pensa mal”. Não se trata de cultuar a dita “língua correta”- muito menos a retórica empolada. Refiro-me a uma linguagem direta, consoante com o ambiente e o pensamento de quem o produz. Trata-se da criação, cultivo e compartilhamento do próprio conhecimento . Trata-se do pertencimento a uma sociedade. Quem fala mal patina no aprendizado, despreza alteridades e trilha um percurso destrutivo.

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Lembro Elias Canetti (1905-1994), romancista búlgaro que escreveu em alemão, Nobel de Literatura em 1981. Sempre às voltas com pertencimento cultural, escreveu uma maravilhosa descrição do descobrimento do mundo através da linguagem.

Trecho de A Língua Absolvida:

“ […] Minhas primeiras recordações estão imersas no vermelho. Saio por uma porta nos braços de uma menina, o chão à minha frente é vermelho e à minha esquerda desce uma escada igualmente vermelha. À nossa frente, na mesma altura, abre-se uma porta e aparece um homem sorridente […] Ele se aproxima bem, pára e me diz: “Mostre a língua!”. Mostro a língua, ele leva a mão ao bolso, tira um canivete, abre-o e põe a lâmina…”

Lâminas, contundências, armas. As mesmas que destroem vidas, ataques a escolas, constroem preconceitos. Pior: constroem seitas. ilustram o que é usar metáfora e alegoria para cancelar diferenças entre entre fé e fanatismo. A ideia operativa das seitas propõe conceitos acertados para emprestar realidade às suas mentiras. A gente incauta de senso comum engole tudo com facilidade. Estabelece a ignorância cognitiva – instrumento principal do olavismo, e por aí se vai ao fundamentalismo da pós verdade de colegas como Putin, Erdoghan, Kim, Milei & Co.

Elias Canetti

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Peço permissão a digredir no que vivi a respeito:

Obras do teatro Sergio Cardoso, em 1975, na Bela Vista. Foto Marcos Fernandes/ Estadão

– passei a adolescência seguindo amigos em bordéis de bairro. Mas eu era diferente deles. Sob ditadura militar anos 70, era posto de lado pelos bacanas do teatro e os assistia nas salas de ensaio do Teatro Sérgio Cardoso no início dos anos 1980. Andava com monólogos de teatro clássico mais Moliére e Shakespeare na minha pastinha de estudante. Com ela entrava nas famosas casas de massagem lá pelas três da tarde. Pedia suco de laranja e abria os textos. meus amigos, depois da sauna, resolviam seus problemas hormonais em salinhas para isso. eu acumulava líquidos e vontades junto a uma imensa vontade de dirigir aqueles textos. Com aquelas mulheres, sentia prazer infinito sendo gentil no calor da sauna , falava dos textos enquanto as massageava (!!!). Muitas chegavam discretamente a chorar , sem muito dizer. somente queriam comer ou beber um pouco depois que saíssem dali. Era uma espécie de sedução proibida (gerentes dali as vigiavam). Convidava-as ao teatro onde trabalhava. Eram mulheres nordestinas ou do Sul, todas com prole. Todas enviavam dinheiro a filhos deixados em suas cidades, via parentes – muitos destes as haviam expulsado, movidos pelo atraso “moral”. Eu as adorava, não queria saber das meninas do bairro, chatas e sem teatro.

Aquelas relações eram o teatro para mim, eram sonho, arte e vida. Ainda é assim para mim. Isso me deixa só – na cadeira de rodas. São o que me resta escrever .

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A imensa maioria de meus amigos de juventude acabou casada com descoladas pequeno-burguesas, com quem produziram prole e separações – por eles chamada de “vida”. Eu nunca os entendi, nem as muitas minhas relações vividas em atitudes congêneres. Tive imensa dificuldade em organizar meus afetos. Mas não virei ermitão: somente um dinossauro inconsútil, oh espelho, espelho meu… Somos todos auto indulgentes em nossas singularidades. Certamente vivo a arte como artista. Artistas nunca deixam de estar sós. Não lamento, trata-se de simples constatação ou de sugestão para quem inicia uma escola de teatro. Atenção: a vida para quem cria num palco pouco muda de quando a começamos. O palco é sempre um tempo circular. Melhoramos por causa desse tempo. Repetição. Franceses chamam ensaio de “repetition”.

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É comum quem quer ser “o bom” mas é somente um idiota… ao menos cinco séculos atras, o protagonista da Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente – termina carregando-a nas costas, em lugar do asno do casal, ao encontro do amante dela. Imagem recorrente desde Boccaccio, Shakespeare, desde Plauto. Quem seria mesmo o burro?

Quando montei essa farsa, décadas atrás, a plateia masculina comentou somente a beleza da atriz – Inês; nada falou – mas pensou – sobre o marido como burro de carga feliz. Burrice estimulada pela testosterona… A burrice é uma das coisas mais bem distribuídas na face da terra. Socialismo às avessas. Fora do teatro parrudo que escancara as dificuldades em organizar afetos – no sentido descrito por Espinosa.

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“Quem mal fala, pensa mal e vive mal. Você precisa encontrar as palavras certas: as palavras são importantes!” – Do filme Palombella Rossa, de Nanni Moretti. Estenderia em “quem mal cita, quem cita fora de contexto, quem cita o que nunca foi dito por este ou aquele escritor, filosofo ou professor.” Em geral, fala e cita mal o olavista, grande perigo cultural e educacional.

Por mal falar não entendo falares de gramatica, ou popular ou incorreto sintaticamente. Porque a pessoa pode não ter podido estudar, ou mesmo por escolha duvidosa, mas escolha. Digo o que atina erro e acerto propositalmente, o desinformado, o tiozão paspalho, o savonarolista, o fanfarrão.

Mal falar é a ignorância cognitiva, que junta informações corretas a lodo de desinformação para construir um “novo normal”- Falar mal são lâminas na língua. São armas acumuladas nas residências. São preconceito e barbárie.