Mauri Paroni
Chá e Cadernos 200.12
Qualquer experiência real possui sutilezas que a representação teatral, literária, imagética, por performática que seja, não consegue marcar o fluxo vital de seu público. Lembro Emily Brontë (1818-1848) e os filmes que se originaram de seu romance único para verificar em qual medida seja possível recuperar a experiência real na arte sem degradá-la numa inútil e incerta verosimilhança. Enquanto regra ou princípio orientador de quem cria, uma obra vale como uma biografia, mas uma biografia vale mais ainda se vivida como a arte que é.
Em O Morro dos Ventos Uivantes – sugiro acaloradamente a leitura – não conto o enredo – há uma passagem muito popularizada por citações: “Não sei de que as nossas almas são feitas, mas a dele e a minha são iguais.” A tradução seria meio diferente se não eliminarmos a anterior: “He’s more myself than I am. Whatever our souls are made of, his and mine are the same.” – Ele chega a ser mais eu do que seria eu mesma. O seu contexto toma o “ser” enquanto verbo o conceitua, o que torna o “ser” uma substância, uma matéria-alguém que “é” vista.
Comparece aqui o “theatron”, do grego “de onde se vê“- ou SEJA, teatro. Arte. Vida. Experiência pessoal. Pois a BRONTË era vista como “estranha”, hoje muito especulada como autista. O que resta é uma consideração de “anormalidade” em seu comportamento – sobretudo o de suas personagens – que supera qualquer convencionalidade da aparência rígida e excessivamente formalista de seu tempo (o século XIX britânico).
Trabalhar a própria biografia como arte num palco é dádiva orientadora dos griots e circenses que jogam suas vidas em seus ofícios. Sao artistas, engajados ou convencionais, que professam a iconoclastia como experiência pessoal a ela consequente.
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Um amigo Malês, vendedor diante da Sede Brás da SP Escola de Teatro que decidiu retornar à sua terra, costumava discorrer com muitos detalhes sobre a riqueza de seu antigo império, que hoje subsiste nas estórias – também riquíssimas – de seus Griots, que eram quem tinha a responsabilidade social de passar adiante a cultura e o conhecimento inteiro do Mali. Eram orais, literalmente – talvez fosse melhor grafar “bucalmente” – como receitas culinárias, contendas e guerras entre poderes constituídos. Instrumentistas, cantores, animadores e contadores de historias (podemos saber da opulência do Mali graças àquelas narrações datadas a partir de 1285). São parábolas e produção de conhecimento que em nada fazem inveja a livros fundadores como a Bíblia, o Corão, o Livro dos Mortos, os hieróglifos das tumbas egípcias, as muitas Estelas antigas, os códigos legais bizantinos.
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Num deserto, riqueza, paraíso, poder constituído, inferno ardente e “causa” (um pequeno ser), imploram pela água do cantil de um viajante-griot que conta e canta a estória. A água acaba por este cedida diante do público àquele pequeno ser chamado “causa”. Qualquer poder, paraíso ou riqueza nada seria diante do cantil do viajante contador – visto estarem na precariedade do deserto. Com a água real cedida e contemporaneamente cantada, griots desenvolvem uma alegoria poderosa: sem a “causa”, nada – sequer a água – estaria aqui. Nem existência haveria sem a “causa”: a filosofia presente cantada pelo griot.
Parecida, mas contada com outros detalhes, encantei-me por um trio de griots que conheci na Itália. A mesma história foi contada pelo Ganês Sotigui Kouyaté, griot em viagem por estas lides. Era parte senão a essência mesma de sua viagem enquanto contador de histórias. Que jamais mente, ao professar uma não ficção com sabor de ficção. É História. É filosofia. É cultura.
(Continua)