Amar o perdido deixa confundido este coração.
Nada pode o olvido contra o sem sentido apelo do Não.
As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão.
Mas as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão.
(Memória, de Carlos Drummond de Andrade)
“Eu era o fotógrafo dos pobres”
Assim se apresentou Derly Marques ao ser convidado para subir ao palco, por Cecília Boal, viúva de Augusto Boal (1931-2009), para receber uma justa homenagem na II Feira Paulista de Opinião ou I Feira Antropofágica de Opinião, idealizada e coordenada pela Cia Antropofágica, no Tendal da Lapa, região oeste da cidade de São Paulo, realizada nos dias 15 e 16 de fevereiro de 2014.
Derly Marques foi o fotógrafo oficial da Primeira Feira Paulista de Opinião, evento produzido pelo Teatro de Arena, em 1968, com direção de Augusto Boal, que reuniu alguns dos mais atuantes dramaturgos do período, como Lauro Cézar Muniz, Bráulio Pedroso, Gianfrancesco Guarnieri, Jorge Andrade e Plínio Marcos, além de compositores como Edu Lobo, Caetano Veloso, Ary Toledo, Sérgio Ricardo e Gilberto Gil, que criaram suas obras em torno da seguinte questão: “O que pensa o Brasil de hoje?”. A montagem uniu a classe teatral paulista e a carioca na luta contra as ações autoritárias da censura.
Ao narrar a sua trajetória na fotografia teatral nas décadas de 1960 e 1970, o fotógrafo apresentou histórias sobre os teatros de Arena e Oficina, entre outros grupos, cujo material de divulgação e memória dos espetáculos era convidado a criar, sempre com baixos orçamentos ou sem nenhuma verba para custear o trabalho fotográfico, diferentemente das grandes companhias que mantinham seus fotógrafos ou convidavam artistas já consagrados. Entre os relatos apresentados, contou como fez a foto histórica em que a atriz Cacilda Becker, então presidente da Comissão Estadual de Teatro da Secretaria da Cultura, Esporte e Turismo, lê ao lado de artistas um protesto contra a proibição da peça com o ator Sandro Poloni, de punho em riste, proclamando a resistência da classe teatral aos atos de censura da época.
Retomando a provocação utilizada por Augusto Boal, o diretor Thiago Vasconcelos e sua trupe se fizeram valer do mesmo tema e convidaram grupos, como “Cia Estável”, “Brava Companhia”, “Cia São Jorge de Variedades”, “Buraco D’Oráculo”, “Cia do Feijão”, “Fraternal Companhia”, entre outros, para apresentarem cenas curtas e responder ao questionamento sobre o que pensam do Brasil de hoje.
A ideia da homenagem proporcionada pelos idealizadores do evento trouxe à tona esse importante trabalho de “resistência” e valorização da memória de companhias teatrais que lutaram pelo direito à voz em meio a uma época de silêncio, opressão e ditadura civil/militar. As palavras do fotógrafo emocionaram, se não a todos, a mim, que mantenho uma forte relação com o discurso e as práticas dos grupos teatrais contemporâneos.
Em tempos de alta tecnologia e velocidade da informação, o trabalho de Derly Marques ressurge como um alento à produção fotográfica atual e, alicerçado no olhar e vivência de um artista que emprestou seu talento para registrar parte importante da produção cênica da sua época e que hoje administra esse acervo com seus próprios recursos, sob o risco do total desaparecimento dessa memória, impõe-se a seguinte indagação: a memória visual do teatro brasileiro precisa ser preservada?
No momento atual, marcado pela pouca vivência das experiências, quando as máquinas substituem as relações e nossas opiniões estão atreladas às experiências de quem as vivenciou, em que o discurso se alimenta da confiança social, como podemos encontrar no texto de Ecléa Bosi (1992:112) […] embora tenhamos a ilusão de participar intensamente desse mundo único que encerra os seres viventes, conhecemos, na verdade, um reduzido espaço dentro dele, e um caminho familiar pelo qual nos guiamos e onde repetimos nossos passos, entre a infinidade de caminhos oferecida a outros seres”, a fotografia pode nos ajudar a “experimentar” parte da nossa história e ajudar a construir uma memória coletiva em torno da produção teatral do nosso tempo. Walter Lippmann (1972:158) escreveu sobre essa autoridade da fotografia […] as fotografias têm hoje sobre a imaginação a espécie de autoridade de que a palavra impressa tinha ontem e, antes dela, a palavra falada. Parecem absolutamente reais. Cuidamos que nos chegam diretamente, sem intervenção humana, e são, para o espírito, o alimento mais fácil que se pode imaginar.”
Para que esses obstáculos sejam vencidos e possamos criar essa nova possibilidade de manutenção da memória visual do teatro brasileiro, será preciso experimentar essas vivências com amor e simpatia pelo tema. Sobre esse sentimento que dedicamos às coisas nas quais acreditamos, Ecléa Bosi escreve: “Mas só merece de nós um esforço aquilo que amamos.”
O mesmo amor que Derly Marques me fez sentir naquela tarde chuvosa.