REQUIESCAT IN PACE!
Maria Alice Vergueiro põe novamente o seu corpo a serviço de Dionísio, em “Why the horse” – em cartaz no SESC Santana – e reafirma o Teatro como rito sacro-profano. Ali, em cena, vemos a pessoa chegar antes do personagem, como ela mesma disse, certa vez, a Antonio Abujamra, falecido há poucos dias.
Numa entrevista ao programa “Provocações”, da TV Cultura, ao comentar “Tapa na pantera”, o curta-metragem que se tornou viral, Maria Alice afirma que considera “brechtiano” esse vídeo, que a alçou a uma fama impensável para o teatro artesanal. Brechtiano porque, segundo ela, justamente, a pessoa do ator vem antes do personagem.
Toda cena teatral brasileira alternativa e experimental se sabe tributária da velha dama indigna, que muito antes de “Tapa na pantera”, já pintava os sete pelos becos e porões, tubos de ensaio, buracos pelos quais o teatro respirava.
Em 1986, por exemplo, em “Katastrophé”, de Samuel Beckett, Maria Alice impressionou a todos, crítica e público, por sua espantosa atuação no trabalho dirigido por Rubens Rusche. A boca vermelha da atriz e sua dicção à moda de John Gielgud tornaram-se emblema da potência das artes do palco.
Mas hoje, a se levar a sério as palavras de Maria Alice a Abujamra, temos de reconhecer que: o Parkinson chega antes também. E a artrose no joelho. E os problemas de articulação de fala. E as dificuldades de memória. Tudo isso aparece como um cartão de visitas que a artista do palco, ao invés de esconder (e como poderia?), escancara.
Apoiado nesse parapeito – e não noutro que não há – é a partir dali que o teatro pode acontecer. É dali que o artista arrisca seu salto. Desse modo, a fragilidade involuntária da grande atriz, o seu limite doloroso, nos chega antes de tudo.
Pelos companheiros de palco, as palavras são sopradas ao seu ouvido octogenário, para que ela então repita o que escutou, naquelas partes em que não consegue mais se lembrar do texto.
O espetáculo assim não se constrange de encampar o grotesco, o decaído, o miserável, o gasto, o puído. Aquilo que está em vias de se desfazer, de se dissolver, de apodrecer, desintegrar, virar nada…
Essa é a legítima escatologia, que aponta para o fim, para o derradeiro canto do cisne. Para a última estação – depois da qual,… brumas.
Porém, se isso tudo fosse apenas uma circunstância particular da atriz, talvez a peça tivesse um interesse muito reduzido. O que potencializa “Why the horse” é a coragem de cutucar o tabu, com a nudez radical de que Maria Alice ainda é capaz. Qualidade que ela não perdeu.
Nesse réquiem – missa de corpo presente – em seu velório, é a própria atriz/diretora quem se dá a extrema unção.
Maria Alice, ela mesma, se oferece em sacrifício, e é essa a lição aos atores: que se ofereçam em sacrifício, necessariamente, como na gênese disto que conhecemos como teatro.
Sempre há uma morte em cena, o que torna o ofício um rito de purificação – pois, ali, ainda e eternamente, algo é sacrificado em nome da vida. Evocando a morte, o teatro produz reinvenção.
Nesta perspectiva, é a morte no palco o tema nuclear de “Why the horse”, morte encarada cotidianamente por todas as peças de teatro que conseguem essa peculiar magia de revelar a verdade a que a ciência não tem acesso.
Todo ator tem de morrer no palco. Assim como todo personagem morre toda noite ao final de todo espetáculo. Assoprando mais vida em nossas pequenas existências, o teatro foi inventado para que suportássemos nossa finitude.
Ao flagrar o momento em que o nome vira pedra, “Why the horse” é também homenagem àqueles que se foram. O cenário é feito de muros repletos de lápides e epitáfios. Ali estão inscritos os nomes dos grandes. Procuramos por nossos queridos mortos – que, se são lembrados ainda, não se foram… Estão por aqui!
Esse espetáculo é uma celebração à vida: quanto mais morta Maria Alice se descobre, mais vida ela é capaz de injetar nas artes do palco.
A vaidade da atriz parece ser esta: a de não ter vaidade nenhuma, nem vergonha de expor as suas cicatrizes. Marcas da história. Tanto mais atriz ela é, quanto mais deixa ver a cicatriz.
Desse modo, a peça nos conduz à equação: cicatriz = motor do campo das artes!
O espetáculo é, enfim, na tradição de Artaud, um ritual: única forma que o humano encontra de lidar com a morte. E, por relativizar e eventualmente abolir as separações palco/plateia, o teatro ritualístico faz com que, ali, no palco do SESC, os espectadores sejam também personagens de um velório, em visitação de pêsames. Um velório em que temos a rara chance de cumprimentar a falecida ainda em vida…
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Já dissera Thomas Maikovski: viver faz mal à saúde! (Thomas Maikovski é personagem de “Risco de Vida”, primeiro romance de Alberto Guzik, cuja mãe era de fato uma legítima Maikovski!).
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No dia seguinte à morte de Abu, seu filho, André Abujamra, cita a primeira frase que o pai lhe teria dito: “A vida é sua, estrague-a como quiser”! In Folha de São Paulo, 29-04-2015.
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Finalmente: “Why the horse” é resultado de um trabalho coletivo, em que – pela imensa, generosa e evidente doação de afeto, não fosse por outra razão – é preciso lembrar as contribuições dos talentosos personagens envolvidos no processo. Assim, temos a presença, entre outros, dos seguintes nomes (muito vivos): Luciano Chirolli, Carolina Splendore, Alexandre Magno, Robson Catalunha, Otávio Ortega, J. C. Serroni, Guilherme Bonfanti, Fábio Furtado e Telumi Hellen…
* por Sergio Zlotnic, especial para o portal da SP Escola de Teatro – zzzzlot@gmail.com